
Com um mercado de trabalho que passa por mudanças conceituais e tecnológicas, a rotatividade no emprego avança no Rio Grande do Sul. Em um ano, quase metade das demissões de pessoas com idade até 29 anos ocorreu a pedido do próprio trabalhador.
As chamadas demissões voluntárias avançam nos últimos anos e com maior participação dos jovens. No acumulado de 12 meses fechados em fevereiro, 315.450 dos 697.089 desligamentos no grupo de pessoas com até 29 anos no Estado foram a pedido dos trabalhadores. O número equivale a 45,25% do total, o maior nível em cinco anos. Além de alto, o índice mostra avanço. Quatro anos atrás, esse percentual estava em 32,84% (veja mais números abaixo).
Esse é o caso de Keila Machado, 19 anos. Nos últimos 11 meses, a porto-alegrense passou por três empregos. Assim como outros 26,9 mil jovens dentro da mesma idade no RS, foi ela quem pediu pelo desligamento.
A jovem explica que as mudanças ocorreram diante de objetivos de carreira, além de necessidades financeiras e de locomoção. Moradora da periferia, ela afirma que precisou recusar uma proposta de efetivação que recebeu após a conclusão do curso de auxiliar administrativo do programa Jovem Aprendiz.
— Ao finalizar, a empresa fez uma proposta de emprego. Só que, para a minha realidade, não cabia muito bem. Era uma vaga de 12 horas por dia, e onde eu moro é muito longe. Eu levava duas horas de viagem, e eles queriam que eu começasse às 7h e saísse às 19h. Eu teria que acordar às 3h da manhã para sair da minha casa. Então, para mim, não batia, eu tive que recusar — detalha Keila.
Apesar de não aceitar a oferta, ela precisava trabalhar. Por isso, ocupou uma vaga de assistente de loja durante duas semanas. O curto período no emprego se deu em razão de uma melhor oportunidade que surgiu em seguida. Keila tem o objetivo de ser psicóloga e viu na vaga de recepcionista de uma clínica de psiquiatria e psicologia a chance de ficar mais perto da área em que quer construir sua carreira.
A carga horária é importante, bem como ter uma função que faça sentido para mim.
KEILA MACHADO
Recepcionista e estudante, 19 anos

Geração questionadora busca qualidade de vida
Flexibilização, busca de maior equilíbrio entre trabalho e vida pessoal e digitalização da economia são alguns dos pontos que explicam esse movimento, segundo especialistas.
O economista Bruno Imaizumi, da LCA 4intelligence, afirma que os mais jovens costumam apresentar percentuais de demissão voluntária muito superiores aos mais velhos. No entanto, o analista reforça que o aumento no número de desligamentos a pedido está ligado a mudanças estruturais recentes nos meios de trabalho.
— Nos últimos anos, a crescente digitalização da economia, a ascensão de modelos de trabalho remoto e híbrido e a busca por maior qualidade de vida podem ter acentuado essas diferenças, especialmente entre os jovens, que têm maior facilidade de adaptação a essas novas dinâmicas e mais disposição para transições frequentes.
A coordenadora do curso de Administração da Escola de Negócios da PUCRS, Judith Ferran, afirma que os trabalhadores mais jovens transitam melhor nos ambientes digitais, o que os aproxima da oferta de vagas e das possibilidades de trocas de postos. Além disso, são menos apegados a determinado cargo, o que abre as portas para mudanças.
— Diferente de gerações com mais idade, que entendiam que a estabilidade precisava acontecer dentro de uma carreira, dentro de uma organização, os mais jovens acabam não tendo essa fidelidade, porque é o nome que o mercado vem usando, mas tem muito mais coisas envolvidas.
As gerações mais velhas foram acostumadas a aceitar passivamente. As mais novas vêm num tom mais questionador, mais focado na qualidade de vida, um pouco mais preocupadas com o impacto que o trabalho está causando no todo do negócio e no todo da comunidade.
JUDITH FERRAN
Coordenadora do curso de Administração da Escola de Negócios da PUCRS
O que dizem os números
Delimitando os dados para a parcela entre 18 a 24 anos, o percentual de pedidos de demissão voluntária sobe para 46,3% — superior aos 34,1% verificados em 2021. Essas taxas também estão acima da média geral, considerando todas as idades, que fica em 41,5% no período (veja no gráfico abaixo, clicando nas legendas para conferir o dado de cada faixa etária).
Os dados fazem parte de um levantamento de Zero Hora, com base em microdados do Novo Caged, do Ministério do Trabalho e Emprego, e metodologia da LCA 4intelligence.
Olhando apenas números absolutos (ou seja, sem considerar a proporção), o grupo entre 18 e 24 anos também lidera no número de pedidos de demissão nos 12 meses fechados em fevereiro, com 182.233 solicitações. Na sequência, aparecem as faixas de 30 a 39 anos, com 155.694 pedidos, e de 25 a 29 anos, com 116.984 demissões voluntárias.
A realidade dos números
Nesse último grupo, estão Eduarda Andrade, 26 anos, e Manoela Costa, 25 anos. Elas atuam em áreas diferentes, mas ambas percebem uma rotatividade nos setores que ocupam.
Assim como Keila, Eduarda está trabalhando como recepcionista. Ela entrou no cargo no dia 2 de janeiro deste ano, dois meses depois de ter assumido como atendente de uma lanchonete. Mesmo com um salário menor, a jovem optou pela mudança devido à carga horária.
— Eu tive que ponderar se queria continuar no emprego, ganhando um pouco mais, mas sem tempo e saúde, ou escolher entre ganhar um pouco menos, trabalhar menos horas, mas conseguir estudar, conseguir pensar no futuro — relata Eduarda.
Em 2022, depois de flexibilizadas as restrições da pandemia de Covid-19, Eduarda começou a trabalhar em bares e restaurantes. Ela tinha o desejo de estudar gastronomia e decidiu conhecer o mercado de trabalho antes de iniciar uma formação na área. Desde então, não conseguiu se manter mais de oito meses em nenhum emprego e se decepcionou com o setor.
Os últimos empregos foram em restaurante, atendimento, cozinha, bar. Chegava em um ponto em que a escala 6x1 detonava totalmente minha saúde física e mental.
EDUARDA ANDRADE
Recepcionista, 26 anos
Além da rotina puxada, Eduarda também elenca a falta de reconhecimento e valorização dos serviços prestados como fatores que influenciaram nas suas decisões. Após deixar o setor, ela deu início a uma formação na área da Tecnologia da Informação (T.I.), atraída pela possibilidade de trabalhar em casa, horário melhor e mais qualidade de vida, além de avanço no salário.
Maior valorização e flexibilidade nos horários foram fatores que também fizeram com que Manoela, professora de inglês, mudasse sua dinâmica no mercado de trabalho. Depois da experiência em quatro escolas diferentes, ela optou por ser autônoma e dar aulas online.
— Por muito tempo, a minha prioridade foi a flexibilidade, porque eu faço faculdade junto. Eu acabava tendo que trabalhar bem mais, mesmo não sendo valorizada, porque tinha que fazer alguns horários aleatórios e era difícil lidar com isso — comenta.
Durante as passagens que fez em instituições de ensino, ela teve experiências negativas e percebeu uma rotatividade no corpo docente de alguns locais, principalmente entre os mais jovens.
— Foi passando o tempo, e eu fui percebendo que eu poderia ser mais valorizada. Isso virou minha prioridade e também minha paz de espírito. Porque, mesmo que eu seja bem valorizada, eu não vou querer me sobrecarregar — afirma Manoela.

O efeito nas empresas e no futuro das relações de trabalho
O efeito dessa alternância de ocupação de postos não fica restrito aos trabalhadores. Isabel Cristina Arraes Degrazia, vice-presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos no Rio Grande do Sul (ABRH-RS), afirma que essa postura dos jovens, com maior desprendimento, também afeta a organização das empresas.
Na avaliação da especialista, os empreendimentos não estão preparados para receber esse público que busca flexibilidade, propósito e mais qualidade de vida.
— A gente precisa trabalhar fortemente em ter lideranças que sejam capazes de trabalhar com esses jovens e criar nos seus microambientes, nas suas equipes de trabalho, esse propósito e essa relação de confiança com esse jovem, para que ele reconheça que ali é um lugar bom, que ali ele vai crescer, que ali ele vai ter oportunidades.
A professora Judith Ferran reforça que as organizações precisam afinar a seleção para escolher profissionais cujo perfil convirja com a vaga que precisa ser ocupada. Com isso, abre-se espaço para maior alinhamento entre contratante e colaborador, facilitando a retenção de talentos.
— O empresário tem que ser um pouquinho mais cauteloso e criterioso na hora da seleção. Tem que entender o perfil comportamental dessa geração e, a partir disso, adequar o seu espaço — explica Judith.
Bruno Imaizumi, da LCA 4intelligence, destaca os custos da rotatividade dentro das organizações. Para evitar ou mitigar esse problema, o economista também cita a necessidade de adequações e preparação para manutenção dos quadros.
— A operação das empresas é afetada, pois há um custo de desligar um trabalhador e admitir um outro, sobretudo o custo de treinamento. Empresas precisam se adaptar e oferecer melhores condições a seus trabalhadores se quiserem evitar rotatividade elevada — pontua.
"Vai continuar acontecendo"
O economista da LCA 4intelligence estima que esse cenário de alternância em postos, capitaneada por jovens, deve seguir nos próximos anos diante de uma atividade que ainda mostra sinais de aquecimento.
— A economia e o mercado de trabalho continuarão aquecidos, o que deve manter a rotatividade do mercado de trabalho elevada. Os novos desejos de trabalhadores mais jovens podem, sim, acentuar essas diferenças entre faixas etárias ao longo dos próximos anos.
A vice-presidente da ABRH-RS avalia que a rotatividade deve seguir ganhando força enquanto a modernização das empresas não avançar, com ambientes e lideranças mais preparados.
— Enquanto as empresas não buscarem essa adaptação, acho que isso vai continuar acontecendo.