
Tentando contornar problemas estruturais e de imagem, o sistema previdenciário brasileiro é encurralado pelo constante aumento do rombo nas contas. Além da inversão da pirâmide demográfica, com aumento da população idosa e queda no número de jovens, outros componentes, como mudanças no mercado de trabalho e avanço da informalidade, impulsionam o déficit da Previdência Social, segundo especialistas.
Eles alertam que, caso nada seja feito, a progressão do cenário negativo tende a causar estragos no orçamento da União, prejudicando ainda mais as políticas públicas.
Dados do Tesouro Nacional, corrigidos pela inflação, mostram que o déficit da Previdência cresceu 60% entre 2015 e 2024. No ano passado, o rombo no sistema, considerando os regimes geral e próprio, que inclui servidores e militares, ficou em R$ 416,844 bilhões — bem acima dos R$ 260,619 bilhões anotados em 2015.
Falta de perspectiva
O motoboy e entregador Yuri Vargas Azevedo é um retrato da situação da Previdência atualmente. Com 21 anos, o jovem não contribui para o sistema, como fazem cada vez mais pessoas nessa faixa etária (veja os números abaixo).
Após encerrar o período como jovem aprendiz, Azevedo resolveu trabalhar com entregas de alimentos via aplicativo. Primeiro, fazia o serviço com o auxílio de uma bicicleta. No fim do ano passado, migrou para a moto. Atuando em Porto Alegre e região, ele afirma que essa ocupação garante mais retorno financeiro para ele, uma vez que não tem, até o momento, um currículo que possibilite rendimentos maiores.
O entregador afirma que não contribui para a Previdência em razão da falta de perspectiva de obter um bom retorno com esse sistema no futuro. No entanto, destaca que investe cerca de 12% do salário em CDB e Tesouro Direto.
— Eu sempre fui interessado nessa parte do financeiro e tal, as ações. Aí eu comecei a pesquisar e vi pensamentos de pessoas que já investem. E todos seguem o mesmo raciocínio, sabe? De que não vale muito a pena tu contribuir para o INSS, sendo que tu vai pagar um dinheirão e receber pouco em troca.
O jovem afirma que está estudando para concurso público, com foco em ingressar nos quadros da Brigada Militar.
Seria muito melhor tu pegar esse dinheiro que tu daria para o INSS e investir num tesouro, que o retorno vai ser muito maior.
YURI VARGAS AZEVEDO, 21 ANOS
Motoboy e entregador

Pirâmide etária é o principal fator de desgaste
O consultor econômico Raul Velloso afirma que o constante aumento da população idosa em um contexto econômico com população em idade ativa que não avança muito é o principal impulsionador do déficit. A relação é relativamente simples: com mais gente recebendo valores previdenciários e a população jovem avançando em passos lentos ou caminhando para queda, o resultado é negativo e com tendência de piora. Quando o tamanho desses dois grupos descola ainda mais, o rombo cresce.
— As duas coisas são complementares. No caso do Brasil, a população de 25 a 65 anos, que é a população em idade ativa, cresce relativamente pouco comparado com a idade acima de 65, que é a população idosa. Quer dizer, se uma cresce muito, a outra não pode crescer no mesmo ritmo — explica Velloso.
Um país onde a população envelhece muito vai ter um gasto crescente com Previdência e uma receita não tão crescente, porque a contribuição vem da população em idade ativa.
RAUL VELLOSO
Consultor econômico
O consultor econômico afirma que o aumento do rombo na Previdência afeta o orçamento do governo federal, que acaba tendo menos verba para políticas públicas.
— O drama disso é que, se você começa a reduzir os investimentos públicos em infraestrutura para transferir dinheiro para bancar a Previdência, uma hora, isso vai se refletir na redução da taxa de crescimento do PIB. Aí haveráaf outras consequências derivadas dessa decisão, como a queda do crescimento das receitas normais da Previdência, que dependem do crescimento da economia — aponta Velloso.

Salário mínimo
O economista Fabio Giambiagi, pesquisador associado do FGV IBRE, afirma que, além das questões demográficas, a regra atual de reajuste do salário mínimo, que é atrelado a parte das despesas previdenciárias do país, é outro fator que ajuda a acelerar o déficit.
— Se normalmente, por razões demográficas, já haveria uma tendência ao deslocamento do gasto com o passar do tempo, a regra do salário mínimo só potencializa ainda mais isso. Porque ela faz com que, além do aumento físico, quantitativo, que ocorre todo ano por razões demográficas, dois de cada três beneficiários tenham incrementos reais.
Giambiagi afirma que outros fatores também exercem pressão sobre o déficit da Previdência, como a "uberização do trabalho", que abre brecha para menor número de contribuições para o sistema previdenciário.
Reforma trabalhista
O professor Maurício Weiss, do Programa de Mestrado Profissional de Economia (PPECO) da UFRGS, afirma que mudanças no mercado de trabalho, como a reforma trabalhista, também exercem pressão sobre a Previdência.
— Essa reforma aumentou a informalidade, criou o trabalho intermitente e enfraqueceu os sindicatos. Além disso, o Congresso tem aprovado diversas reformas que isentam a contribuição previdenciária por parte do pagador. Dessa forma, aliado ao envelhecimento normal da população, amplia-se o déficit fiscal, a despeito do maior número de trabalhadores empregados nos últimos anos.
Contribuição cai, informalidade aumenta
A queda na contribuição da população em idade ativa e o aumento da informalidade, com destaque para os mais jovens, têm sido um problema atual e com potencial de aumentar a dor de cabeça do governo nos próximos anos.
Uma pesquisa publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em dezembro, aponta que houve uma tendência de queda na contribuição previdenciária entre os jovens de 20 a 29 anos entre 2012 e 2023. A taxa de contribuição desse grupo etário caiu de 66,9% para 64,1% nesses 11 anos.
Na contramão disso, a taxa de contribuição grupo de 30 anos ou mais cresceu de 63,3% para 66,3% no mesmo intervalo de tempo. O ganho de força da informalidade no período tem papel fundamental nesse processo, segundo o Ipea.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, reforçam esse movimento. A pesquisa aponta que a taxa de informalidade de jovens de 18 a 24 anos, subiu de 39,4%, no primeiro trimestre de 2016, para 40,5% no mesmo período de 2025.
Já o índice da população de 25 a 39 anos subiu de 33% para 34,2% no intervalo entre as duas datas. Nas faixas de 14 a 17 anos, de 40 a 59 anos e acima dos 60 anos, as taxas de informalidade apresentaram queda comparando os primeiros trimestre de 2025 e 2016.

Busca por soluções
Esse cenário também preocupa o governo, olhando para o futuro. Projeção dentro do projeto de projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) aponta que o déficit do INSS, no regime geral, passará de 2,58% do PIB (R$ 328,9 bilhões), em 2025, para 11,59% do PIB (R$ 30,88 trilhões) em 2100. Ou seja, crescer quatro vezes em 75 anos.
Parte dos economistas avalia a necessidade de uma nova reforma no médio prazo para mitigar esse rombo e evitar cenário mais catastrófico. Nesse sentido, pontos como a idade mínima, no sistema atual em 65 anos para homens e em 62 para mulheres, e aposentadoria rural devem voltar a entrar em discussão.
O economista-chefe e sócio da Warren Investimentos, Felipe Salto, avalia que o próprio Brasil já promoveu avanços na busca por mais equilíbrio no sistema, como a criação do o fator previdenciário, da Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público da União e a aprovação da reforma de 2019. No entanto, Salto destaca a necessidade de pensar em alternativas antes de chegar ao limite.
— É um processo histórico e, muitas vezes, gradual. Nosso país, muitas vezes, acaba optando por promover reformas mais estruturais apenas quando a situação já está muito próxima do limite ou quando as condições fiscais já são muito ruins e a realidade acaba se impondo. Foi assim com o teto de gastos, com o novo arcabouço fiscal e, lá atrás, com a Lei de Responsabilidade Fiscal.
O economista Fabio Giambiagi acredita que existe a necessidade de uma nova reforma nos próximos anos, atacando pontos que ficaram de fora do último projeto, como alteração na idade mínima. Além disso, é necessário diminuir a diferença de idade mínima entre homens e mulheres — hoje em três anos — e alterar a aposentadoria de trabalhadores rurais, segundo Giambiagi.
— Aposentadoria aos 55 anos é incompatível com o mundo de hoje. A pessoa vive muito mais. Isso em algum momento vai ter que ser modificado.
Além desses pontos, o pesquisador associado do FGV Ibre cita a necessidade de rever, de forma civilizada e realista, a relação entre o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a aposentadoria. Giambiagi destaca que esse benefício tem de existir e é necessário, mas não com os mesmos valores e regras de idade observados no público que contribuiu por 15, 20 anos.
Previdência no mundo
A busca por equilíbrio ou controle do déficit previdenciário não é uma exclusividade do Brasil, mas existem alguns exemplos de países com modelos mais sustentáveis e eficientes.
Estudo da consultoria Mercer em parceria com o CFA Institute apontou que, em 2024, Países Baixos (Holanda), Islândia e Dinamarca têm os melhores sistemas previdenciários. A entidade elabora o ranking por meio de um índice que compara 48 sistemas de renda de aposentadoria no mundo — o Brasil é o 33º colocado. O índice é formado por três subíndices: adequação, sustentabilidade e integridade.
Nos países que ocupam as três primeiras colocações, chama a atenção a existência e um sistema que é formado por previdências públicas, complementares e privadas que atuam de forma harmoniosa e robusta.
Os Países Baixos aparecem no topo da lista mesmo em meio a um processo de reforma previdenciária. O modelo holandês, considerado um dos mais sólidos do mundo, é formado por previdências dos três tipos, que funcionam em harmonia, dando robustez ao mecanismo.
Com a reforma, o país deve migrar de uma estrutura de benefícios coletiva para um padrão com foco mais individual, de contribuição definida (CD). Na CD, o valor do benefício do cidadão é definido com base no saldo de conta acumulado do participante, que conta com as contribuições defendidas em contrato. A entidade afirma que, mesmo com essa mudança, o sistema holandês continuará a oferecer benefícios bons, "apoiados por uma base de ativos sólida e uma regulamentação muito sólida".
A Dinamarca também combina benefícios pagos pelo governo com planos de previdência complementares obrigatórios e privados. Além desse leque de opções que atuam de forma fluida, a idade mínima para aposentadoria cresce de acordo com a expectativa de forma gradual. Atualmente, o país está elevando a idade mínima de 67 anos para 70 anos, a partir de 2040.
A previdência na Islândia é formada por sistema estatal, um suplemento de pensão, planos de previdência privada ocupacional obrigatórios com contribuições de empregadores e empregados, além de pensões pessoais voluntárias.
Fabio Giambiagi afirma que alguns países da Europa estão migrando para regimes de aposentadoria com idades mais avançadas em busca de um sistema menos problemático. Ele destaca a necessidade da antecipação para evitar rombos maiores no futuro.
— Os países que são melhor sucedidos são aqueles que efetivamente se programam com tempo. Vislumbram o problema daqui a 30, 40 anos e tomam a decisão hoje. Não esperam estourar a bomba para tomar medidas.