A medida provisória (MP) do Contribuinte Legal, editada pelo presidente Jair Bolsonaro em outubro, dá poderes ao Executivo de celebrar acordos com contribuintes em débito com o fisco utilizando critérios elaborados pelo próprio governo e sem aval do Congresso.
Para especialistas consultados pela Folha de S.Paulo, a norma concede poderes excessivos ao Executivo e permite que o governo adote critérios arbitrários para definir a quem vai dar o benefício de um acordo para sanar dívidas com descontos, o que pode estimular situações de favorecimento.
A MP, que ainda precisa ser aprovada pelo Congresso para virar lei, regulamenta a chamada transação resolutiva de litígio, que está prevista no Código Tributário Nacional desde 1966, mas nunca foi aplicada.
— Sempre existiu uma problemática sobre como regular essa negociação porque os bens públicos são da coletividade e não podem ser liberados para terceiros por conveniência do agente público. O governo não pode unilateralmente decidir, por exemplo, não fazer uma cobrança de imposto — diz o tributarista Guilherme Guimarães Oliveira.
— Abrir mão de receita é algo grave, e geralmente é um poder que se delega ao Legislativo. Todos os Refis, por exemplo, foram aprovados pelo Congresso. Agora, a MP autoriza genericamente o Executivo a fazer isso. É pouco saudável do ponto de vista normativo — diz Luca Salvoni, sócio do escritório Cascione.
O texto da norma afirma que os acordos poderão ser assinados nos casos em que exista dívida ativa do contribuinte com a União e em caso de contenciosos tributários considerados relevantes pelo Ministério da Economia. A dívida ativa é o título por meio do qual a União cobra tributos na Justiça, em geral depois que o contribuinte perde os recursos na esfera administrativa.
Nesses casos, a MP prevê que a União possa conceder até 70% de desconto sobre os valores dos débitos classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). O pagamento poderá ser feito em até cem meses. Segundo o governo, esses benefícios poderiam chegar a 1,9 milhão de contribuintes, cujas dívidas superam R$ 1,4 trilhão.
Para as negociações em que o débito fiscal estiver relacionado a um contencioso, o texto da MP também permite ao governo dar descontos sobre o valor da dívida e parcelar o pagamento em até 84 meses.
O texto prevê dois tipos de acordo: por meio da adesão do contribuinte devedor aos critérios estabelecidos em portaria da PGFN nesta sexta-feira (29) ou de acordos individuais, propostos pelo contribuinte ao governo ou vice-versa.
Pela portaria, a União já pode fazer acordos com contribuintes que tenham dívidas totais superiores a R$ 15 milhões em casos de capacidade insuficiente de pagamento. Também há a opção de fazer a tratativa com empresas em recuperação judicial ou falidas e em caso de dívida suspensa por decisão judicial, nesse caso desde que o montante supere R$ 1 milhão.
O texto também incluiu a possibilidade de o devedor utilizar precatórios federais para amortizar sua dívida. Para o advogado Rodrigo Prado, sócio do escritório Felsberg, o ponto traz uma inovação.
Na opinião do advogado tributarista Hugo Macedo Segundo, professor da Universidade Federal do Ceará, a MP institui uma espécie de Refis, mas não fala em prazos para adesão e vale apenas para quem o fisco decidir conceder o benefício.
— A medida certamente terá validade questionada. O texto fala em negociação do contribuinte com o Executivo, mas a Fazenda e o contribuinte não estão em igualdade de condições. O que deverá acontecer é que os grandes contribuintes serão beneficiados —afirma ele.
— Os critérios para assinar os acordos, pelo texto da MP, são discricionários. Cabe ali o que o Executivo quiser, há falta de parâmetro. As regras deveriam ser claras, objetivas e isonômicas — afirma Macedo.
Para ele, a norma tem dois pontos inconstitucionais.
— O texto busca isentar autoridades que participam da negociação da transação de qualquer responsabilidade administrativa, salvo se ficar comprovada a má-fé para beneficiar terceiros, mas a Constituição diz que MPs não podem tratar de temas penais. Além disso, o texto diz que, se o contribuinte descumprir o acordo, a União poderá pedir sua falência, o que é matéria processual da qual medidas provisórias não podem tratar.
Para Luca Salvoni, a concentração de poder pode trazer riscos como o de favorecimento ou corrupção, já que as regras e balizas para a concessão do benefício são definidos pelo próprio Executivo.
— Algum contribuinte pode se sentir lesado por não ter recebido o mesmo tratamento de um concorrente, e isso pode gerar judicialização.
Apesar disso, Salvoni afirma que a norma busca resolver problemas graves do fisco.
— O texto é útil porque se propõe a reduzir o estoque enorme de passivos de créditos considerados incobráveis ou de difícil recuperação e busca resolver contenciosos antigos, o que é bom. Ainda discutimos débitos do Plano Verão, de 1989. Não tem cabimento.
— Geralmente a legislação já fixa os critérios de maneira clara. A MP deixa a cargo do Executivo estabelecer quais serão as premissas para o contribuinte fazer um acordo. A administração pública passa a exercer um papel que a rigor é do legislador — afirma Guilherme Guimarães Oliveira.
— Pelo texto da MP, a administração pública tem carta branca para propor a um contribuinte uma negociação sem trazer a possibilidade de que outro nas mesmas condições possa negociar — diz.
Para Hugo Macedo Segundo, a norma deixa uma brecha para que os acordos individuais celebrados com contribuintes não sejam públicos.
— O texto fala em manter o princípio da isonomia e da transparência, mas os condiciona ao respeito do sigilo fiscal. Na prática, poderemos ter acordos confidenciais, o que compromete a transparência.
Para Rodrigo Prado, contudo, a MP "caminha na tentativa de aproximar mais fisco e contribuinte para discutir o pagamento de tributos, algo inédito na história do país e que acontece em vários países".
Procurada, a PGFN disse em nota que a MP "possui compatibilidade plena com a Constituição Federal".
— A MP 899/2019 prevê expressamente a autorização para que os litígios tributários sejam resolvidos através de acordo entre os contribuintes e a administração pública, bem como limites bastante claros e objetivos paras as concessões por parte da administração tributária.
Segundo o órgão, o Congresso dará a autorização para que esses acordos sejam realizados ao aprovar a MP e convertê-la em lei, "segundo as balizas objetivas, limites claros e percentuais definidos".