
Quase quarenta anos separam Lilia Cabral e Giulia Bertolli, mas o tempo entre mãe e filha não parece rígido. Dentro e fora de cena, elas transformam as diferenças geracionais em diálogo. Enquanto uma carrega a experiência de quem acompanha há algumas décadas as mudanças de tom e ritmo da dramaturgia, a outra chega com a inquietude de um novo perfil artístico. Juntas, descobrem que aprender não tem idade, e que dividir o mesmo palco é dividir espelhos.
— Acho que não existe essa qualificação, de que quem é mais velho já viveu tudo e não tem que aprender mais nada e quem é jovem ainda tem o que aprender. Esse pensamento acaba emburrecendo. Faz você olhar de uma forma limitada porque só está vendo aquilo que quer ver ou o que acha que já sabe. E a gente não sabe nada, não dá para dizer que já sabe de tudo. A vida está aqui para ser vivida e eu ainda quero aprender bastante — reflete Lilia, aos 68 anos.
É sobre isso que fala A Lista, peça que reúne as duas em cena pela primeira vez e desembarca em Porto Alegre de 30 de outubro a 2 de novembro, com apresentações no Teatro Simões Lopes Neto do Multipalco Eva Sopher. O espetáculo aborda o encontro entre mulheres de idades diferentes (Laurita, interpretada por Lilia, e Amanda, por Giulia) que, diante da solidão e de desafios impostos pela pandemia de covid-19, descobrem formas de convivência, empatia e afeto.
A montagem, com texto de Gustavo Pinheiro e direção de Guilherme Piva, foi criada em maio de 2020 para apoiar profissionais da área teatral que ficaram sem trabalho durante o isolamento social. As primeiras apresentações foram online e, depois, em algumas sessões presenciais que respeitavam os protocolos sanitários.
Porto Alegre recebeu o espetáculo, na época com 45 minutos, em 2021. No ano seguinte, a peça ganhou uma versão completa, voltou a rodar o Brasil, e, recentemente, virou filme.
— Estou feliz com esse fim de ciclo da peça, depois de cinco anos, e de pisar novamente no palco dessa cidade linda. Acho que Porto Alegre foi a cidade que fez a gente acreditar que A Lista tinha um futuro, principalmente nesse lugar da gente ouvir a plateia pela primeira vez e acreditar que a gente tinha uma boa história. Acho que, no final das contas, a gente conta histórias e essa tem sido muito feliz — avalia Giulia, 29.

Confira a entrevista com Lilia Cabral e Giulia Bertolli
Na peça, a dona Laurita e a Amanda têm personalidades bem diferentes. Na vida real, vocês também são assim?
Lilia: Eu não sou chata igual a dona Laurita.
Giulia: Eu também não me acho parecida com a Amanda, em termos de personalidade.
Lilia: Mas em algumas coisas eu e a Giulia somos bem parecidas. Eu acho que ela herdou de mim o perfeccionismo. Podia ser mais leve...
Giulia: Ah, mas agora está menos. Estou melhorando.
Lilia: É, está... E o imediatismo. Ela não tem paciência, nem eu tenho. Mas, em contrapartida, somos bem diferentes. Acho que eu e ela somos ousadas. Eu cheguei aqui no Rio de Janeiro e eu fiz 26 anos. Eu tinha muita responsabilidade e não tinha suporte, então existia uma insegurança muito grande. Era um desafio e eu corri atrás.
A Giulia, talvez, por ter suporte familiar, me ensina a ter calma e tranquilidade em algumas coisas da vida. Nesse sentido, às vezes eu vejo que ela luta com armas mais consistentes, e, com isso, tem mais tranquilidade e não fica tão violenta ou brava em relação à vida. E eu, como tinha que sobreviver, ficava brava em relação à vida. Eu fui aprendendo a ficar menos brava.
Essa foi a primeira peça que colocou vocês duas juntas em cena. Como vocês avaliam a experiência de trabalhar juntas?
Giulia: Eu acompanho a minha mãe a vida inteira no teatro, principalmente nos bastidores, eu cansei de ver inúmeras e infinitas vezes repetidas as mesmas peças, as mesmas apresentações, mas era sempre muito num lugar de plateia. E poder sair desse lugar de bastidor e ir para cima do palco, realmente, dividir e acompanhar com ela todo o processo.
Em cada apresentação, minha mãe consegue fazer de um jeito diferente. Ela me mostra que, apesar de a gente ter o mesmo texto todas as noites, nunca é a mesma apresentação.
São cinco anos que a gente cresceu e amadureceu muito, não apenas na nossa relação de mãe e filha, mas de companheiras de cena. Eu tenho certeza que vou levar tudo que aprendi para o resto da minha carreira.
Lilia: Eu aprendi muito. A gente aprende sempre.
Lilia, tu viveste muitos papéis marcantes na televisão brasileira. Tem a Griselda, ou o Pereirão, como todos conhecem, de Fina Estampa (2011). Tem a Catarina, de A Favorita (2008), que também foi super polêmica na época. Alguma dessas grandes personagens te marcou?
Lilia: Olha, tantas coisas boas aconteceram, eu acho que cada um foi de uma forma especial que aconteceu na minha vida e também foram especiais para o meu crescimento. A Griselda, eu nem sei como é que eu fiz.
Acho que tinha um anjo da guarda me empurrando, porque ela era muito complexa. Primeiro, de tirar de mim todo o glamour. A minha vaidade está em me expor da forma que o personagem pede, e não de aparecer linda e maravilhosa. Acredito que tive e terei oportunidades de aparecer assim, como em A Garota do Momento (2024).
Cada roupa que eu colocava, era muito legal, porque eu descia e todas as costureiras vinham ver a roupa que elas tinham feito. Elas ficavam emocionadas, os olhinhos chegavam a brilhar, porque é a vida delas.
Tua carreira também foi marcada por algumas vilãs bem odiadas. Qual o peso que elas carregam na tua história?
Lilia: A pior de todas, para mim, foi a Maristela (Garota do Momento, 2024). Da mesma forma com que ela falava “me passa o açúcar”, ela falava “você passa lá naquele lugar, tira a arma do bolso e dá um tiro naquela pessoa”. Ela achava mesmo que as pessoas incomodavam.
Apesar de ser uma história das 18h, e os personagens serem arquetípicos, ela foi humanizada pela tragédia da solidão, em que não tem escapatória. Você é uma pessoa sozinha, ninguém gosta de você e, quando ela se dá conta disso, se torna pior.
A Tereza, de Viver a Vida (2009), ela era uma mulher cheio de preconceitos. E esses preconceitos faziam com que ela fosse próxima de muita gente, porque tinha gente que defendia ela. E ela foi ficando humanizada a partir do momento em que a filha ficou tetraplégica. Ela conseguiu mudar.
Mas acho que, mais que essas personagens, foi em Páginas da Vida (2006). Ela era uma mulher infeliz. Tudo que ela desejava na vida é que todos fossem infelizes como ela, e isso é pior do que mandar matar. Ela acordava de manhã e tinha o desejo de que todos se dessem mal. Isso é horrível e o Maneco escrevia isso como ninguém. Ele dava alma para essas personagens. As pessoas falavam “mas que mulher ruim”, só que existe muita gente parecida.
A dramaturgia está em constante evolução. E tu tiveste muitos papéis de mulheres complexas, cheias de camadas. Como tu enxergas a evolução das mulheres que são narradas hoje nas novelas e nos filmes, tanto das que tu tens interpretado quanto as que tu vês outras colegas interpretando?
Lilia: Tem muita história boa dentro das novelas. Geralmente, as histórias femininas são bem atraentes. Eu gosto muito mais de observar o trabalho das minhas amigas, acho que é assim que me dou conta disso. Mas teve uma evolução. Antigamente, você fazia cena de 10 páginas de texto e agora é tudo imediato. Mas fico pensando: será que uma cena bem escrita de seis páginas não segura? É o risco de tentar.
Acho, também, que as atrizes que defendem os seus papéis femininos ficaram cada vez mais próximas do público. Por causa das redes sociais, as pessoas veem no celular em qualquer lugar, então está muito próximo e isso é bom. Isso é o que mais me chama atenção na dramaturgia hoje.
Para o futuro, o que tens em mente?
Lilia: Agora, tenho muita vontade de fazer um outro projeto, para o povo dar bastante risada. Eu tenho saudade da época de A Diarista (2004-2007) e de A Grande Família (2001-2014). Tenho vontade de fazer o povo dar aquela risada gostosa de comédia de costume, e não uma comédia gratuita.
Quero fazer uma comédia com inteligência, com as pessoas se identificando e sentando na sala para todo mundo assistir junto. Ainda é muito embrionário, mas é sincero. Quem sabe eu consiga.
Como vocês se enxergam hoje?
Lilia: Ah, eu nem sei. Uma vez alguém me perguntou quem é Lilia Cabral. Eu falei que era uma artista brasileira, paulista, que é casada, tem uma filha. Como se fosse puxar o Google ou a Wikipédia. Não sei muito o que dizer sobre mim. Acho que quem me conhece, não conhece intimamente, porque tenho um grau de reserva e consegui que todos respeitassem isso.
Como todas as outras pessoas, acho que estou sempre em busca de algo. Mas eu não quero ser analisada, eu quero ir para a análise. É diferente.
Giulia: Minha resposta é um pouco parecida com a da minha mãe. Eu nunca parei para me autoanalisar. O que eu posso dizer é que, no atual momento de vida em que estou, sou muito feliz e realizada com tudo que conquistei. Ao mesmo tempo, sei que gostaria e ainda tenho muito para conquistar. Acho que a virtude da paciência me ajuda a entender que algumas coisas demoram um pouco mais para acontecer do que outras, mas que os resultados são consequência de trabalhos feitos de uma maneira até um pouco mais silenciosa do que para muitos. Eu gosto muito de divulgar as coisas quando elas já aconteceram.
Tu cresceste vendo a tua mãe construir essas personagens marcantes, sempre soube que queria ser artista e conseguiu trilhar teu próprio caminho como atriz e roteirista. Em que momento tu sentes que a Giulia se descolocou da figura de filha da Lilia Cabral e ganhou a própria personalidade artística?
Lilia: Ela já se descolou de mim há bastante tempo.
Giulia: Descolar 100% eu nunca vou. Eu sou filha da minha mãe, com certeza, e vou ser para o resto da vida. Mas acho que é muito através das escolhas de carreira, de vida e de caminhos. Sempre admirei muito e fiquei feliz com os caminhos da profissão da minha mãe. Para mim, ela é um exemplo muito grande, não só como mãe, mas como atriz. E eu sempre soube que gostaria de trilhar o meu próprio caminho. Então acho que, desde muito nova, tentei fazer isso.
Eu fico me perguntando, nos meus momentos de inquietação, o que eu gostaria de falar agora, qual é a história que eu gostaria de contar. Essas são frases que sempre me motivam, em todos os projetos que eu fiz, seja atuando ou escrevendo, dirigindo ou produzindo. Eu sempre tento procurar essa próxima história.
Como que tu percebes o papel da tua geração nesse processo de evoluir e modificar as narrativas que a dramaturgia conta? O que tu ainda sentes falta de ver nas telas e nos palcos?
Giulia: Acho que a nossa geração é muito contestadora em muitos sentidos. Pelos motivos negativos ou positivos. Colocamos muito os pontos de vista em evidência. Sinto que, durante muito tempo, coisas que não deveriam ter sido normalizadas foram normalizadas. A minha geração, e uma anterior a minha, questiona isso, coloca em evidência esses lugares de fala, de debate.
O audiovisual sempre foi o grande lugar onde você poderia falar. E a internet veio para deslocar um pouco essas plataformas de comunicação. Mas temos que ficar atentos. Ao mesmo tempo em que você pode divulgar informações que são importantes e interessantes, você pode divulgar informações falsas e alienar as pessoas de uma maneira negativa.
A nossa geração veio com a capacidade de falar para um público maior, mas eu acho que nós, como sociedade, ainda temos que aprender a filtrar os conteúdos. Acho que esse tenha sido o maior papel dessa galera.


