
A habilidade de Ana Suy em tornar conversáveis temas complexos ligados ao ato de amar e de se relacionar fez com que a escritora, psicanalista e professora conquistasse leitores Brasil afora. Dá para dizer que a curitibana se tornou, principalmente para suas leitoras, uma espécie de "guru-amiga": alguém que consegue traduzir, com humor e empatia, o caos afetivo contemporâneo.
Em 31 de maio, Ana Suy estará em Porto Alegre ao lado do psicanalista Christian Dunker, com quem escreveu o recém-lançado Eu Só Existo no Olhar do Outro?, no Festival Fronteiras. A dupla comandará uma palestra no palco do Teatro Simões Lopes Neto, um dos espaços do Multipalco Eva Sopher. Ingressos disponíveis neste link.
Nós estamos todos bugados da cabeça. Estamos em conflito porque não há um caminho único na vida.
ANA SUY
Escritora, psicanalista e professora
A autora de best-sellers como A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão e Não Pise no Meu Vazio, agora se dedica ao lançamento do livro feito com Dunker, em que destrincham o conceito do que é “eu” e debatem até que ponto este “eu” é formado pelo olhar do outro.
— Toda a nossa conversa é sobre o que é existir, como nos constituímos a partir do olhar do outro e quais são os limites daquilo que o outro não constitui. Não há como não falar de amor e de relacionamentos, porque é disso que se trata: “quem eu sou para o outro?”, “quem o outro é para mim?” — afirma Ana. — Também falamos do quanto isso sempre é tomado por algum nível de equivocação, pois não há como tirar a prova real de que o outro é o "outro" como tal, pois estamos em contínua transformação. É uma conversa muito despretensiosa.
Um dos temas recorrentes nas obras da escritora tem a ver com a impossibilidade de uma relação amorosa sanar a sensação de vazio interior de cada indivíduo. Ana explica que esse preenchimento raramente acontece, já que o outro “não é aquilo que queríamos que ele fosse” — e também pode carregar “seu próprio vazio”.
— Quando você tem alguém, surgem novas questões: há o medo de perder, você quer que essa pessoa amada esteja bem, pois isso é crucial para que você esteja bem. Na realidade, aumentam as possibilidades de perturbação. O amor não é só gostoso, é perturbação, então você tem que ter bons motivos para escolher sustentá-lo.
Na entrevista exclusiva a seguir – com mais perguntas e provocações do que respostas, ao melhor estilo psicanalítico –, Ana fala sobre os desafios do amor em um cenário em que sobram opções e faltam referências, e instiga a refletir sobre o trabalho que dá sustentar uma relação – já que o amor não é só conforto, é também angústia e dedicação.
Confira a entrevista com Ana Suy
O que o leitor pode esperar da palestra com Christian Dunker no Festival Fronteiras?
O livro é um desdobramento da pergunta-título, que veio como efeito de um poema que escrevi no livro As Cabanas que o Amor Faz em Nós (2024) e que diz assim: "Eu só existo no seu olhar, então, por favor, pare de piscar". A partir daí, a Editora Planeta propôs o título Eu Só Existo no Olhar do Outro?
Ao ler o título, tive uma sensação de incômodo, uma vontade de responder que “não", que há um “eu” que é só meu, não do outro...
Concordo contigo: nem tudo o outro acessa, graças a Deus. Há coisas que, felizmente, não passam para o campo dele, ficam com a gente. A teoria do inconsciente de Freud diz que "o 'eu' não é senhor em sua própria casa", porque o “eu” na parte consciente é algo que conseguimos reconhecer e limitar. Agora, aquilo que é da ordem do inconsciente, ainda assim, participa do “eu” de alguma forma?
Além disso, temos uma relação duplicada com nós mesmos, no sentido de que quando penso em mim, também penso: "o que será que as pessoas estão pensando de mim?”. Só que esse outro que criamos na nossa cabeça nada mais é do que uma versão de nós mesmos, e muitas vezes ela nos faz sofrer.
Esse “eu” que vem do outro algumas vezes nos coloca em caixinhas? Faz com que a gente vista a carapuça...
Sim, e isso é complicado. Imagine as crianças, que ainda nem têm um “eu” formado: alguém fala algo para elas e, às vezes, acreditam e se tornam naquilo que foi falado. Na maioria das vezes, é preciso muitas décadas de vida até chegar a uma análise, uma terapia, onde a pessoa conseguirá se separar disso.
O seu trabalho dialoga com muita gente e parece repercutir bem, principalmente, entre as mulheres. Por que será?
Acho que é porque nós estamos todos bugados da cabeça (risos). Estamos em conflito porque não há um caminho único na vida. As mulheres não abandonaram a história do casamento, não assumiram o estilo "já que não precisa de casamento e maternidade, vou fazer outras coisas", mas continuam tomadas por questões "como achar um amor", "quero ou não quero ser mãe", "como ser mãe e mulher ao mesmo tempo".
Estamos meio sem referências, pois está tudo muito diferente da ideia que criamos na nossa infância. Tínhamos a ideia de que o amor é algo que você encontra pronto e que, após isso, tudo flui na sua vida. Afinal, as histórias acabavam no “felizes para sempre”. No passado, as pessoas também viviam menos, enquanto hoje considera-se viver até os 100 anos, e isso implica um novo questionamento: "Se antes era para ficar felizes para sempre até os 50, e agora estamos vivendo o dobro, como é que faz?". Tem muita vida depois dos “felizes para sempre”.
É assustador quando alguém se interessa pela gente. O olhar, o interesse e desejo do outro nos bagunçam.
ANA SUY
Escritora, psicanalista e professora
Quais são outros fatores que desordenam a equação do “felizes para sempre”?
Tem a possibilidade de trabalho, que faz com que as mulheres se aproximem de algo que era função dos homens até então. Antes, a diferença estava clara – a mulher cuidava da casa e dos filhos e não era remunerada. Por isso, precisava de um homem que sustentasse a família. Quando as diferenças estão claras, a gente tem muito menos perturbação.
Mas agora, com essa dissolução das diferenças – tanto as mulheres trabalham e são remuneradas quanto os homens são convocados a fazer coisas que antes estavam só postas para as mulheres – ficamos no meio de uma disputa, ninguém sabe direito o que fazer. Ainda mais com as diversas possibilidades de experiências amorosas que antes eram marginais e hoje fazem parte da nossa sociedade.
Dá para dizer assim: antes a gente não tinha tantas possibilidades, era isso e ponto. Agora parece que temos tantas opções que ficamos que nem na hora de escolher um filme na sexta à noite: gastamos duas horas só zapeando entre os streamings.
É verdade que está mais difícil de se comprometer com uma relação atualmente?
Acho que está. Conhecemos a pessoa rápido demais e, em questão de minutos, você olha na rede social e descobre tudo o que essa pessoa pensa. Isso faz com que haja uma idealização enorme ou faz com que a pessoa seja “eliminada”. Ultimamente, popularizou-se o termo hardballing, que faz você ser o mais honesto possível no primeiro encontro: se quer compromisso sério ou não, explicar o que espera da vida, etc.
Acredito que os relacionamentos têm a função de nos transformar, então se um encontro acontece e me mobiliza, às vezes não sei mais o que quero e quem eu sou. Nos encontros, a gente se perde da gente mesmo para, paradoxalmente, se encontrar com uma novidade em nós mesmos. Não tem como fazer isso sozinho, eu dependo do outro para me encontrar comigo.
São as amizades que vão nos informar se estamos sendo fiéis a quem a gente era, aos nossos valores.
ANA SUY
Escritora, psicanalista e professora
Isso parece um pouco assustador...
A ideia de solidão que achamos mais aprazível é a ideia da solidão-independência, especialmente para as mulheres da nossa geração que escutaram a vida toda: "Você não pode depender de homem, você precisa ter sua vida". E aí, de repente, você chega a uma experiência amorosa e percebe que não tem como amar sem depender, em alguma medida.
E aí você fica tipo: "Meu Deus, não posso! Eu estou colocando minha vida em risco". Temos a ideia de que o amor é uma coisa que queremos, quando, na verdade, se apaixonar é algo angustiante. É assustador quando alguém se interessa pela gente. O olhar, o interesse e desejo do outro nos bagunçam.
Qual é a diferença entre solidão e isolamento?
Temos uma ideia de solidão que se confunde com isolamento, que é se afastar do outro, não precisar de ninguém, ser independente. E aí a pessoa sofre como uma condenada sozinha, porque pedir ajuda é demonstrar vulnerabilidade, o que não é agradável. E, assim, vamos ficando cada vez mais sozinhas e abandonadas, inclusive por nós mesmas.
Mas há muitas mulheres que estão sozinhas dentro de relações, não é?
Sim, há isso também, e muitas não conseguem nem se dar conta de que estão sozinhas porque não têm outros tipos de relações que poderiam ajudá-las a se dar conta de que algo não vai bem. É por isso que tanto se fala e se exalta a função das amizades. São elas que vão nos dar notícias, nos informar se estamos sendo fiéis a quem a gente era, aos nossos valores.
São pessoas com quem podemos aprender outras modalidades de amor também, promovendo uma descentralização do amor romântico-sexual, que abre outras possibilidades amorosas. É muito enriquecedor quando acontece de duas pessoas amarem outras coisas no mundo, além de uma à outra.
Você defende que o amor dá trabalho. Por quê?
Acontece que estamos sem referência: ainda há no horizonte a ideia de que encontraremos um formato pronto de amor que vai funcionar e seremos felizes para sempre. Mas a ideia que a psicanálise propõe é: independentemente de qual for o caminho, a gente não deve contar com o “felizes para sempre”, e sim com o quão trabalhoso é sustentar um relacionamento e inventar novas formas de se relacionar.
O amor dá trabalho porque a gente não consegue ficar parado, pois, ao longo do tempo, nós mudamos. Mas o que garante que vamos mudar na mesma direção? Não há garantia. Então, é constantemente um esforço de aproximação e de afastamento. Relacionamento demanda trabalho todo dia. Mas é preciso separar trabalho de sofrimento: sim, temos que ficar frequentemente recalculando a rota com relação ao outro, mas esse trabalho não é o mesmo que um sacrifício.
Tem coisas que não se deve suportar?
Às vezes, caímos na ideia do cinismo de que “não existe homem perfeito” e se tolera coisas impensáveis. Vale prestar atenção e se questionar se faz sentido suportar determinada situação ou não. Precisamos reconhecer nossos limites e respeitá-los, porque isso está no nosso controle, já o outro respeitar não está no nosso alcance.
Qual é a diferença entre conquistar e fazer uma relação?
É como um trabalho em grupo na escola ou na faculdade, em que todo mundo acha que vai fazer alguma coisa, quando, geralmente, só uma pessoa faz e coloca o nome dos outros. Um relacionamento amoroso se parece com isso. Até então, era muito comum que as mulheres fizessem isso, esse trabalho em grupo da família. Agora, quando falo de fazer um relacionamento, é sobre encontrar a parceria de trabalho, uma mão de obra para o que quer que seja. E quando a gente acha, precisa cuidar disso.
Como você avalia a receptividade do público ao seu trabalho?
É um carinho humanizado e maduro, menos idealizado. Das mulheres, isso chega como gratidão, no sentido de “obrigada por escrever algo que já pensava, mas não conseguia dizer”. Elas se sentem gratas por poder fazer certas coisas serem conversáveis. Fico feliz que as pessoas tenham o desejo de ler questões, porque eu não tenho respostas. Isso produz efeitos no mundo, o que é a grande alegria de uma escritora.
O Festival Fronteiras tem apresentação do Governo do Estado do RS; patrocínio master de Icatu Seguros, Banrisul e Corsan; patrocínio de Unisinos, Unimed, Banco Topázio, Sicredi, Sulgás, CMPC, Grupo Zaffari, Caixa Econômica Federal e Governo Federal. Apoio institucional do Tribunal de Justiça do Estado. Parceria com Associação do Ministério Público, Assembleia Legislativa do RS e Prefeitura de Porto Alegre. A realização é da Delos Bureau, uma empresa do Grupo DC Set, e a promoção do Grupo RBS.