:: Como os russos encararam o vídeo machista? Mulheres na Rússia falam sobre assédio no país da Copa :: Copa 2018: famosas protestam nas redes sociais contra vídeo machista de torcedores brasileiros :: Repórter da Globo assediada na Rússia desabafa: “Temos que reagir, não podemos deixar passar em branco”
Por Débora Pradella e Alice Bastos Neves
Direto de Moscou
Ekaterina Alekseevna foi a mulher mais forte da história russa. Casada com Pedro III, destronou o marido e se tornou Imperatriz da Rússia. Nascia ali Catarina, a Grande, que reinou de 1762 até sua morte, em 1796.
Foi no palácio que Catarina mandou construir (mas que nunca morou) em Moscou que levamos três russas para conversarem sobre temas polêmicos que envolvem a Copa do Mundo e o país onde nasceram. Além da nacionalidade, Alina Kaledina, Ksenia Motina e Olga Komarova têm em comum o fato de falarem português e enfrentarem os desafios de ser mulher na Rússia.
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Qual a opinião de vocês sobre os vídeos de torcedores brasileiros que viralizaram durante a Copa ridicularizando mulheres aqui na Rússia?
Olga - Os russos também têm o costume de fazer brincadeiras ensinando outros povos a falarem palavrões. Mas falar palavrão é uma coisa, ensinar uma menina a falar algo que ofende a honra dela e que ela não entende, é outra coisa. A gente ficou muito irritada com este vídeo.
A Rússia é um país machista?
Olga - Eu acho que depende da região. Moscou é um país dentro de um país, aqui eu diria que não. Mas a Rússia é um país muito grande, com muitas culturas e religiões, então tem machismo em outras regiões.
Olga Komarova, guia turístico. Mora em Moscou
“A conexão com o Brasil surgiu das novelas. Na década de 90, passou “Por Amor” aqui na TV russa. Me apaixonei pela Regina Duarte e decidi que queria ver mais do trabalho dela. Comecei a estudar português sozinha.”
Como vocês veem a diferença na relação homem e mulher aqui na Rússia e no Brasil?
Alina - O machismo no Brasil e na Rússia acontece de maneiras diferentes. No Brasil, vejo mais a questão de assédio, de homens que não respeitam o não de uma mulher. Na Rússia, também existe isso, mas existe mais machismo no entendimento do papel da mulher. Acreditam que mulher tem que estar na cozinha, fazer tudo em casa e que homem não pode fazer isso. Não dá para generalizar e dizer que não existem outras relações, mas mesmo assim existe pressão sobre a mulher em relação ao casamento, por exemplo. Na Rússia, tem idade certa para você se casar, e isso geralmente acontece no final da universidade, aos 22 ou 23 anos.
Alina Kaledina, 29 anos. Doutoranda em Psicologia na USP . Mora em São Paulo
“Comecei a estudar a língua portuguesa por acaso. Acabei fazendo intercâmbio no Brasil e agora estou morando no Brasil há cinco anos e fazendo doutorado."
No ano passado, o presidente Putin sancionou uma lei sobre violência doméstica que não considera crime agressões que deixam apenas marcas superficiais. O que vocês acham disto?
Alina - Na Rússia existe esse discurso tradicionalista que várias autoridades apoiam. Isso não representa a população inteira, não representa a vida das pessoas. Mas esse discurso está circulando. Antes da Copa, uma chefe de departamento de família fez um pronunciamento no Parlamento orientando as mulheres russas a não entrarem em relações com estrangeiros, porque isso poderia gerar filhos. Se você avaliar a partir de valores atuais, é uma coisa que não se deveria falar.
Quais são os principais desafios das mulheres aqui na Rússia?
Ksenia - A mulher russa não é defendida completamente. Por exemplo, quando a mulher russa se divorcia, não tem regras oficiais do governo para defender esta mulher. Pode se separar, mas pode ser que tenha complicações depois.
Ksenia Motina, 29 anos, importadora de Vinhos. Mora em Moscou
“Português é meu terceiro idioma. Decidi aprender quando fui ao Brasil pela primeira vez e gostei da energia. Tanto que já fui oito vezes! Quando estou no Brasil, parece que estou em casa.”
A homossexualidade foi crime na Rússia até 1993. Em 2013, foi aprovada a “lei da propaganda gay” que proíbe a distribuição para menores de idade de conteúdos que defendam os direitos LGBTQI+ ou equiparem relacionamentos heterossexuais a homossexuais. Qual a opinião de vocês sobre isto?
Alina - A lei proíbe a propaganda de homossexualidade, só que não tinha nenhuma propaganda na Rússia. Então a lei proibiu uma coisa que não existia. Por elevar esta onda de que a Rússia é um país tradicional e de que ‘para nós isso não é bem-vindo’, eu acredito que a lei gerou um impacto na sociedade provocando mais polêmica e piorando a situação.
Olga - Cada pessoa tem o direito de viver como ela quiser, mas eu concordo com a questão das crianças. Enquanto eles ainda não formaram a sua mente, eles não precisam ver as coisas que a sociedade considera erradas. Eu tenho amigos que são homossexuais, não vejo nada de mal nisso. Não me atinge em nada. Eles se relacionam normalmente, mas também não dá para sair e ficar se beijando na rua. Talvez eu seja um pouco tradicionalista, porque eu acho que qualquer demonstração exagerada de afeto não cai bem em público.
Ksenia - A sociedade russa ainda não está pronta para isso. A primeira vez que eu vi dois homens se beijando foi no Brasil. Claro que tem na Rússia, mas eu nunca vi.
E qual a diferença no tratamento dado às mulheres por homens russos e homens brasileiros?
Olga - Os homens brasileiros não são acostumados a dar presente ou flores. Os russos são. Se vão para o encontro com uma mulher, eles geralmente levam flores. Mas, de modo geral, eles são iguais. Com todas as diferenças, os russos e brasileiros são muito parecidos.
Você acham mesmo que os russos e brasileiros são parecidos?
Ksenia - Não, claro que não! Eu vou ao Brasil duas vezes por ano, todos os anos, e vejo que a mulher brasileira é muito chefe. Uma vez, um amigo meu me disse: “você viu como as nossas mulheres nos tratam como cachorros?”. Parece que os homens do Brasil fazem tudo para a mulher, e isso é diferente.
Alina - Na Rússia, não existe esta questão de ficar e namorar. Se você começa a sair com alguém, isso já é namoro para nós. Já ouvi muitas histórias de mal-entendidos de mulheres e homens russos que se relacionaram com brasileiros.
Ksenia - Quando eu comecei a aprender português, eu não entendia a diferença entre ficar e namorar. Meu professor me explicava que ficar é só por uma noite e namorar é por mais tempo, mas como pode né?
Mandem um recado para as mulheres brasileiras.
Alina - Eu queria falar sobre a Copa, porque a gente ainda vê como algo tradicionalmente do homem. Quem joga são os homens, quem vai assistir nos bares são homens. Hoje, não é mais assim. Tem várias jornalistas e comentaristas mulheres, que gostam de futebol, mas mesmo assim continua esta ideia de que é algo de homem. Acho que no Brasil também tem essa brincadeira como aqui na Rússia de que mulher não entende de futebol. É importante discutir este assunto na Copa, porque tem que respeitar a mulher e o trabalho da mulher.
Ksenia - As mulheres do mundo todo são parecidas. Nós queremos família e um bom trabalho.
Olga - Eu não sei se deixo o recado para as mulheres ou para os homens. A mulher que ocupa um cargo importante é vista e tratada como um homem. Mulher ficando em casa é tratada com menos importância. Os homens do mundo todo têm de pensar que a mulher, em primeiro lugar, é a mãe que tem de criar os filhos, mas não pode tirar o direito da mulher trabalhar e ter sua carreira. Só acho que quando a mulher é tratada como um homem, ela passa a ser homem, então daqui a pouco a sociedade vai ser formada só por homens de saia.
Curiosidade: sem sobrenome da mãe
Os filhos de russos não carregam o sobrenome da mãe para as próximas gerações. Em compensação, o pai é lembrado duas vezes. Entenda:
1) o patronímico
Não é coincidência que os homens russos tenham nomes do meio que acabem sempre com "vich": Ivanovich, Petrovich etc. Nem é coincidência que tenham muitas Yuryevna, Robertovna ou Ivanovna.
Isso porque não são sobrenomes, mas sim patronímicos. Eles se originam da junção do nome do pai com os finais evich/ovich (para homens) e ovna/evna (para mulheres) e indicam que a pessoa é "filho ou filha do Fulano".
2) o sobrenome
É sempre herdado do pai (que já é "homenageado" no patronímico). Se for menina, é necessário incluir um "a" no final do sobrenome para indicar o gênero (Sharapov - Sharapova). Quando casam, as mulheres trocam o sobrenome do pai pelo do marido.