
Luiz Fernando Carvalho conversa com o repórter, pelo telefone, em uma tarde deste mês.
– Estou no meu canto – informa ele, acrescentando que está fazendo o dever de casa.
Carvalho destrincha o bloco de capítulos de Velho Chico que acaba de receber. Após alguns percalços iniciais, a novela, como o rio, encontrou seu curso. Vem de longe a parceria do mais importante diretor da TV brasileira com Benedito Ruy Barbosa.
– Baseado na confiança, ele me autoriza a mexer nos capítulos, se julgo necessário – diz Carvalho, emendando que não tem sido preciso, pois parceria de Benedito com o neto tem dado certo: – Ele tem todas as chaves do melodrama, é um grande teledramaturgo, e o Bruno (o neto) está cheio de entusiasmo, querendo incorporar coisas novas.
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O diretor está satisfeito, o público está OK – os índices superam os de muitas novelas que seriam salvadoras da pátria e não foram. Para Carvalho, Velho Chico está sendo "um milagre". Ele trabalhava na montagem de Dois irmãos, sua minissérie já mitológica adaptada do romance de Milton Hatoum, quando a Globo chamou-o para apagar um incêndio. A novela das nove anunciada estava sendo adiada e, em dois ou três meses, teria de entrar no ar uma substituta, e seria Velho Chico. Diretor/autor – uma raridade na televisão –, e muito meticuloso, acostumado a trabalhar no seu ritmo, Carvalho teve de fazer o que não gosta: se apressar. Poderia ter dado errado. Os deuses da teledramaturgia o protegeram. A novela é, como ele diz, um milagre. Mas a entrevista não é para falar sobre a dramaturgia. Nem sobre o elenco – bem, um pouco. O tema é a fotografia de cinema de Velho Chico.
Têm havido outros experimentos, mas até o mais distraído dos telespectadores já se deu conta de que existe algo especial na luminosidade e textura das imagens. Aqueles tons terrosos no núcleo pobre, as luzes que se refletem nas águas do rio e as cores fortes, o barroco carregado do interior da casa dos ricos.
– A luz é personagem, e das mais importantes – avalia Carvalho, que mesmo pressionado pelo tempo, fez seu trabalho como sempre. – Tenho meu galpão de treinamento, onde reúno toda a equipe. Atores, técnicos, costureiras, cenógrafos, aderecistas. A gente conversa, levo gente que tem como contribuir.
Estabelece-se o conceito, e o de Velho Chico foi de que teríamos isso que você chama de fotografia de cinema.
E Carvalho dá uma aula.
– Fotografia é luz. Estamos trabalhando com terra, com água. A paisagem é forte. E temos as pessoas. Decidi, com o Frutuoso (diretor de fotografia), que íamos usar refletores de filamento, que são mais antigos, mas oferecem uma textura mais quente, mais marcada, e essa é a realidade que buscamos na novela – explica.
Quando sentar para assistir a novela nesta noite prepare-se e preste atenção nas cores e nas texturas. Apesar de todo o empenho no trabalho do galpão, chega um momento em que Carvalho pede a sua equipe que não tenha medo de errar - que se abra ao mistério da criação, ao indizível. Existe uma filosofia de trabalhar no estúdio, que tem um ambiente controlado, da mesma forma que se trabalha nas externas.
– As câmeras são as mesmas e o que tento fazer é estabelecer o mesmo desenho de luz para os dois ambientes – explica.
Na verdade, o grande projeto de Velho Chico é esse desejo de Carvalho de reeducar o olhar do público:
– Quero acreditar que o público se dá conta de que a luz está entrando diferente. Que está batendo de uma forma mais emocional. Se a ideia é resistir, não há resistência sem memória.
Em Velho Chico, detalhe técnico, o switter fica dentro do estúdio, o que impacta na lógica do cabeamento e das câmeras, e torna o processo mais próximo, mais orgânico. E, depois de tudo isso, na pós-produção, há um efeito chamado de "color grading". Carvalho destaca a importância de Sérgio Pasqualino na finalização:
– Esse tratamento final, que dá a cor, impõe a textura característica de Velho Chico. Na novela, cada personagem tem uma fotografia, que ajuda também a compor a narrativa da história.
A síntese de toda essa elaboração talvez seja a personagem de Cristiane Torloni (Iolanda). Carvalho fica mudo do outro lado da linha. O repórter desfia suas restrições a Cristiane. No teatro e na TV, eventualmente no cinema, sempre lhe pareceu uma atriz afetada. Aqui, algo se passa com ela. Carvalho concorda.
– Cristiane foi de uma entrega muito grande. Reinventou-se no galpão de treinamento, como todo mundo – diz.
O repórter não deixa por menos:
– Sabe quem ela me lembra? Ingrid Thulin em Os deuses malditos, de Luchino Visconti.
De novo, Carvalho fica mudo, mas termina por admitir que o barroco viscontiano é sua referência suprema – a maior de todas.
De volta a Dois irmãos, anuncia que tão logo a novela termine, em meados de setembro, ele voltará à minissérie, que a Globo programa para janeiro. Antes disso, e a exemplo de Paolo Sorrentino, que vai mostrar os dois primeiros capítulos de sua primeira série – The young Pope – em Veneza, Carvalho antecipa, olhem a novidade, que poderá exibir os primeiros capítulos de Dois irmãos no Festival do Rio. Nós, cinéfilos, agradecemos.