
Se no Aeroporto Salgado Filho é necessário embarcar em um avião para ir longe, do outro lado da Avenida Severo Dullius, na KTO Arena, antigo Pepsi on Stage, ninguém precisou de aeronave alguma para viajar neste sábado (4). E o percurso foi longo, passando por várias eras. De 1993 até 2025. Bastou a banda Planet Hemp subir ao palco para isso ocorrer.
Antes, porém, os telões montados no espaço traçaram uma linha do tempo com diversos eventos importantes do Brasil e do mundo que influenciaram, de alguma forma, a criação do Planet Hemp. O resgate foi desde a repressão da ditadura militar, passando pelo filme Queimando Tudo (1978), Chico Science e Nação Zumbi até a Chacina da Candelária, em 1993, mesmo ano em que surge a banda.
Foram cerca de 20 minutos de retrospectiva até que os integrantes da banda subissem ao palco, às 23h34min — o show estava marcado para às 23h —, em meio a uma nuvem de fumaça que ocupava a KTO Arena. Como os telões já antecipavam, a apresentação seria histórica. E, de fato, foi o que os artistas entregaram. A despedida do grupo em Porto Alegre foi incendiária.
Com Marcelo D2 (vocal), BNegão (vocal), Formigão (baixo), Nobru (guitarra), Pedrinho (bateria) e Daniel Ganjaman (produtor e multi-instrumentista), a banda que nasceu no Rio de Janeiro veio para a Capital para a sua apresentação derradeira, dentro da turnê A Última Ponta, depois de mais de três décadas de estrada. Estavam presentes também um trio portando metais, que se destacaram ao longo da noite.
— Essa é a última vez que o Planet Hemp vai tocar em Porto Alegre. E está tudo certo. É a nossa festa de encerramento. Hoje é um dia especial para caralho. Tem muitas pessoas que a gente ama aqui, muito foda. Essa cidade é muito importante para a gente — disse Marcelo D2.
Setlist pesado
A ideia de A Última Ponta é passar a limpo a história do Planet Hemp, o que explica o setlist com mais de 30 músicas que a banda trouxe a Porto Alegre, todas dentro de um gênero bem definido pelas décadas do grupo: o raprock'n'rollpsicodeliahardcoreragga. Ou seja, uma mistura única que destacou os artistas desde a sua formação, ainda com Skunk (1967-1994), um dos fundadores do grupo ao lado de D2.
Ainda que o Planet Hemp tenha a diversidade de gêneros em sua essência, para a despedida a guitarra e a bateria se fizeram ainda mais presentes, deixando as canções mais pesadas e enérgicas. E isso contagiou o público. A abertura do show se deu com Dig Dig Dig (Hempa), Ex-quadrilha da Fumaça e Fazendo a Cabeça. A plateia já estava aquecida.
O mote do show, além de recontar em cima do palco a história do grupo, era apresentar músicas que atravessaram as gerações e que ainda conversam com o Brasil de hoje. Foram revisitados todos os quatro álbuns de inéditas do grupo — de Usuário (1995) a Jardineiros (2022), ganhador de duas categorias do Grammy Latino —, com críticas sociais e pedidos pela legalização da maconha.
Inclusive, um dos pontos altos da noite foi quando a banda cantou Legalize Já, hino do Planet Hemp desde os seus primórdios. A Arena KTO veio abaixo, pulando e cantando juntamente com BNegão e D2 — que ressaltou, algumas vezes, estar rouco, o que não o impediu de entregar uma grande performance.
Na metade do show, o telão exibiu a notícia de quando os integrantes do Planet Hemp foram presos, em 1997, por apologia às drogas, com direito a matéria no Jornal Nacional. No palco, BNegão afirmou:
— Isso só deixou a banda maior do que já era.
Dentro do tema, enquanto Jardineiro trazia um clima mais tranquilo, Queimando Tudo levantou a casa de shows. Uma das cenas marcantes da despedida da banda em Porto Alegre foi quando, na hora da canção Quem Tem Seda?, a plateia levantou isqueiros acesos, criando um cenário estrelado para uma noite que, fora da KTO Arena, estava cinza.
No palco, com um show de luzes psicodélicas, um sofá e um microfone em formato de orelhão, os músicos estavam em plena sintonia e a energia da amizade e da gratidão por estarem ali podia ser vista de qualquer ponto do local. E isso motivou algumas formações de rodas punk entre o público — a maior delas foi durante 100% Hardcore.
Convidados
Após esses momentos, foi a vez dos convidados do Estado chegarem junto. Em ZeroVinteUm, Da Guedes subiu ao palco. Na sequência, os cariocas e os gaúchos cantaram POA: "Mais uma noite em Porto Alegre e tá tudo bem / O relógio tic-tac, a hora eu não sei". A plateia entrou no embalo. Antes do pessoal do Partenon descer, ainda deu tempo de uma palinha de Bem Nessa: "Chega, respeita / Chega e representa".
Na sequência, Edu K foi chamado. D2 relembrou que foi durante um show do DeFalla, banda da qual o gaúcho era vocalista, que ele subiu ao palco pela primeira vez, no Circo Voador, no Rio de Janeiro, em 1994.
— Se estou aqui hoje, muito é por culpa desse cara — disse o vocalista do Planet Hemp, apontando para Edu K.
Na sequência, cantaram juntos Não Me Mande Flores, clássico do DeFalla, além de improvisarem outras músicas, mostrando a sintonia dos artistas.
— Não acredito que a última vez que toquei com o Planet Hemp em Porto Alegre foi com o Edu K — festejou D2.
Hora do adeus
Já batendo as duas horas de duração, o show do Planet Hemp ainda deu espaço para Samba Makossa e uma homenagem para Chico Science e a Nação Zumbi. Contexto foi a escolhida para encerrar o show, com o público cantando alto: "Quem é que joga fumaça pro alto? Planet Hemp!". Este foi o momento para D2 apresentar a banda toda, trocar abraços e reforçar que todos ali formaram uma grande família, com brigas, mas amor e proteção.
Os músicos saíram do palco, mas retornaram um minuto depois. A música final foi Mantenha o Respeito, que colocou todos os presentes para cantar e pular como se não tivessem passado por mais de 30 músicas em um ritmo frenético.
Ao fechamento da canção, os artistas foram ovacionados com uma grande salva de palmas, mostrando que, mesmo com o fim do Planet Hemp, o respeito pelos serviços prestados para a cultura brasileira será mantido. Para sempre. O relógio marcava 1h54min.
Gerações
Ricardo Segalin, 47 anos, bancário, saiu com amigos de Nova Prata, na Serra, todos em um Ford Del Rey, no melhor estilo anos 1990. Vestindo uma camiseta do Planet Hemp, ele estava emocionado com a despedida da banda, a qual acompanha desde a juventude.
— Estar aqui, hoje, é nostálgico. Sempre curti os caras pelo lance da contracultura, por eles gostarem da erva e, claro, por serem antissistema. E as letras deles seguem atuais, mesmo com mais de 30 anos tendo passado. Então, vamos com eles até a última ponta — destaca Ricardo.
Se de um lado está um veterano, que acompanha a banda desde os primórdios, de outro está Bianca Borges, 24, editora de vídeo. Ela, que também precisou pegar a estrada saindo de Santa Maria, na Região Central, ao lado dos amigos para ver o Planet Hemp, estava empolgada para ver o show. Mesmo nem sendo nascida na época da formação da banda, via as letras fazendo sentido quando começou a escutar o trabalho dos músicos.
— Sempre curti muito a banda, as músicas. E, quando fiquei sabendo que era o último show, quis vir. E acho que o que mais mexe com a gente são as letras que falam de revolução, de ser contra o sistema — reforça Bianca.




