
Nascido Kleber Cavalcante Gomes, ascendeu como Criolo Doido. Hoje, é apenas Criolo. Com 50 anos completados em 5 de setembro, o cantor, compositor e ator está em turnê celebrando a data. Cria do Grajaú, periferia de São Paulo, ele encontrou nas rimas a sua forma de sobreviver e de contribuir com a sociedade.
Desde criança, Criolo é um residente do mundo da cultura hip-hop. Trabalhou com calma a sua jornada, respeitando a música e navegando por entre outros gêneros, como MPB e samba. O seu primeiro disco, Ainda Há Tempo — o único que ele considera totalmente de rap —, saiu em 2006.
— Esperei muito. Comecei a escrever com 11 anos, as coisas começaram a acontecer comigo aos 37. Esperei a minha vez — diz o artista, sete vezes indicado ao Grammy Latino.
Com uma paz interior que transparece em sua fala, contrastando com suas letras afiadas, retratos de uma observação constante da realidade urbana do país, Criolo traz a Porto Alegre seus sucessos na bagagem. O show ocorre na próxima sexta-feira (17), no Auditório Araújo Vianna.
Confira a entrevista:
Tu nasceste na época em que o Brasil estava na ditadura militar, viveu a redemocratização, a esquerda no poder, a direita no poder. Impeachments, condenações, extremismo, fome. Como tu acomoda essa realidade caótica e transforma em música?
Acho que foi vivendo o tempo, porque, em todos esses fatos históricos que você descreve, temos a sensação de que somos meros coadjuvantes de quem decide. A única coisa que você tem é tão pequena, é tão pouca para interagir com isso, ou ter a falsa ideia de que está interagindo com isso, é o seu voto.
É muito pouco quando ele se traduz a um grupo de pessoas as quais você também não escolheu. O que a gente percebe, sobretudo a pessoa que acorda às 4h para ir trabalhar e mal vê o filho, a filha, é que nos deixam muito distantes disso tudo. E a impressão é que somos pessoas que estão à mercê.
Aí vem uma segunda coisa que traz um alento, que traz uma força e dissolve um pouco essa sensação de só estar no estádio e não poder chutar a bola, que é a arte. A arte ajuda nessa comunicação, nessa aproximação das pessoas que têm afinidade. A arte foi e é um caminho que ajuda a gente ter uma sensação não tão distante dessas decisões, por mais que ainda seja uma luta muito grande.
Hoje em dia, tu és uma referência do rap, um cara bem-sucedido. Como tu segues conversando com esse público que continua nas periferias, que acorda às 4h? Como não se desprender dessa realidade?
Porque nós somos essa realidade. Se uma pessoa está sofrendo, todo mundo sofre. Se melhorou para um, não quer dizer que melhorou para todo mundo. E o que é melhorar, né? Às vezes, a gente está em um lugar tão sofrido, tão esquecido, que você passar 20, 30, 40, 50 anos trabalhando para conquistar o básico dá a impressão de que você conquistou muita coisa.
E você está falando só do básico, que é a garantia do Estado, porque está no estatuto que alguém escreveu, mas que também não fui eu que escrevi. É um dever do Estado cuidar do seu cidadão.
A gente celebra muito comprar uma casa, celebra muito que a gente tem um carro, celebra muito que consegue ver a formatura do filho. Isso nos dá a sensação de que realmente houve uma revolução e, por vivermos essa realidade tão áspera, realmente, a gente celebra como se fosse a maior conquista do mundo. E é para quem não tem nada, mas, ao mesmo tempo é tão sofrido e tão desumano, porque a gente leva 40, 50 anos para chegar aonde a gente já deveria ter nascido.
Nós somos tudo isso, mas só se te toca, porque existe o foro íntimo. Se tal situação não te toca, você não vai ter empatia ou se perceber ali. É como não se perceber dentro de um contexto que você nasceu nele. Você é o contexto.

E como tu vês a tua trajetória, esses teus 50 anos de vida e quase 40 de carreira? Como o rap transformou a tua vida?
O rap é uma transformação total na minha vida. Eu me percebi vivo, que era capaz de fazer alguma coisa, de contribuir. Tirava aquela angústia do coração, porque, às vezes, a gente se sente tão pequeno. Então, o rap é tudo para mim e me abriu as portas de conhecer tantas pessoas maravilhosas.
Escrevo desde os 11 anos, canto desde os 13. Vivo essa intimidade com essa expressão cantada, escrita e falada de quase quatro décadas, mas ainda vejo que tenho tanta coisa para aprender, tanta coisa pra fazer. Se você for ver bem a força do rap na minha vida, ela é tão grande e eu só tenho um disco de rap, com 37 anos de carreira. E esse disco fez com que as pessoas também olhassem para mim, foi o pavimento total para o Nó na Orelha, que mudou a minha vida completamente.
Do Nó na Orelha, veio o Convoque o Seu Buda, o Espiral de Ilusão e, depois, o Sobre Viver. Agora, vem um álbum que, pela primeira vez, divido o trabalho com dois amigos: Amaro Freitas e Dino D'Santiago. É um presente na minha vida esses dois. Para você ver a força do rap na vida de uma pessoa. Eu sou prova viva disso.
Vivo essa intimidade com essa expressão cantada, escrita e falada de quase quatro décadas, mas ainda vejo que tenho tanta coisa para aprender, tanta coisa pra fazer.
CRIOLO
Cantor, compositor e ator
O rap sempre foi um gênero marginalizado. Hoje, ele está presente em grandes festivais. Tu vês uma mudança na cabeça das pessoas a respeito do rap com o passar do tempo?
Não sei se mudou. Se essa mentalidade tivesse mudado, o funk também não sofreria preconceito, o pessoal não chamaria a polícia para quem faz roda de samba. Você consegue imaginar o escândalo que seria hoje, em 2025, se o Cartola estivesse vivo e as pessoas estivessem chamando a polícia para prender o Cartola por estar cantando samba com seus amigos?
É o que acontece hoje com outro tipo de som, que tem outro nome, mas que nasce dessas mesmas pessoas, desses mesmos lugares, desse mesmo território abandonado. Essas pessoas têm que provar todo dia o coração bom, a honestidade, a importância dessa arte, dessa música feita por elas e que, mais uma vez, conquista o mundo. Precisou cruzar o Atlântico, o Pacífico, conquistar o mundo todo para pessoal falar que o funk existe.
Mas ele está existindo porque o jovem agora comprou um carro bom? Você está respeitando pela força que move esse capital ou pela mudança do coração, de vida, de alegria, de autoestima que ele levou para o bairro dele? Da melhoria de qualidade de vida que ele deu para a família? Será que mudou? Eu não sei, porque o Brasil é muito grande. É uma pergunta que temos que jogar para a sociedade.
Mas os espaços para o rap foram surgindo, né, Criolo?
Os espaços vão aparecendo porque não tem como você ignorar a força de uma cultura. Não é porque quer, é porque alguém está ganhando dinheiro com isso. A maioria das pessoas que estão milionárias com a música que nasce da favela não são as faveladas. São poucos. E a gente aplaude essa revolução.
O rap, hoje, está entre os gêneros mais escutados do Brasil. O funk está entre os gêneros mais escutados do Brasil. Quem são os donos das gravadoras? Quem está distribuindo? Quem cuida de tudo isso? Quem recolhe isso? Quem faz o repasse? São pequenas entidades? São pequenos escritórios? Esse dinheiro vai 100% para esse jovem? Esse dinheiro é fragmentado? A gente pode abrir essa discussão para todos os artistas da cena independente.

Hoje em dia, a gente vê muito essa questão da música sendo feita para ser o hit da semana, o hit da estação. De repente, essa música cai no esquecimento e vem outra. Como se adaptar a esse cenário da indústria?
A gente não se adaptou. Só isso. Talvez, por falta de talento. Será que a gente não pode pensar de uma outra forma? Tem pessoas que têm talento para fazer uma música por dia e essa música vai atingir a massa, mas eu não tenho esse talento. Se existe uma indústria que faz isso, ela não dá espaço para o outro que faz do outro jeito.
E não é esse cara que está fazendo desse jeito que tirou o espaço, é a própria indústria que não deixa ter esse espaço. E aí as pessoas têm que se adaptar para pagar a conta. Eu não consegui ter esse talento. Então, tem tudo isso, mano. Tem que questionar a indústria, não o trabalhador dela. O trabalhador dela é uma fração disso.
Como está sendo celebrar esse teu meio século de vida com uma turnê? O que te motivou a comemorar essa data revisitando a tua carreira, em cima do palco?
Rapaz, para você ter uma ideia, no dia do meu aniversário, eu estava em Caruaru com uma apresentação. Eu estava tão focado em trabalhar que não comemorei o meu aniversário com ninguém, em lugar nenhum, nem com a minha família, com nada. Estava trabalhando, mas, ao mesmo tempo, eu celebro um pouco do significado: é a minha vida entregue para a música.
Em cada palco que eu vou para fazer essa apresentação de 50 anos de idade, eu deixo a minha vida toda lá como agradecimento. E o meu desejo de que eu ainda quero continuar vivo, que eu ainda quero cantar, que eu acho que eu ainda consigo produzir algo, que eu acho que ainda consigo fazer algo que seja relevante. Estou nesse sentimento de que é muito trabalho e que o trabalho apenas começou, que eu tenho que andar muito.
Escrevo desde os 11 anos, canto desde os 13. Vivo essa intimidade com essa expressão cantada, escrita e falada de quase quatro décadas, mas ainda vejo que tenho tanta coisa para aprender, tanta coisa pra fazer.
CRIOLO
Cantor, compositor e ator
Tu tens datas dos teus próximos projetos?
Eu acredito que ainda neste ano sai este álbum com os meus amigos Amaro Freitas e o Dino D'Santiago. E tem um livro, que não vou nem dar nome de livro, mas um documento de diálogos entre eu e minha mãe.
Eu estou com 50 e ela com 75. Acho que já aprendi a ouvir ela. A gente ainda é muito criança pra entender os mais velhos, a gente leva um tempo. Acho que já consigo decodificar toda a sapiência dela. Então, a gente tem esse documentar vivências nossas que a gente vai mandar para o mundo.
Tem um disco de samba também com meu amigo Dino, que eu acho que sai no ano que vem. Porque a gente celebra isso até setembro do ano que vem esses 50 anos. E eu comecei a escrever os raps também.

Tu falas que tem somente um álbum totalmente de rap. Isso é porque tu transitas pelos gêneros, como MPB e samba. Como é, para ti, como artista, visitar outras vertentes?
Mais uma vez, é a força do rap. Se eu canto samba, se eu tenho coragem e ousadia para pedir permissão para cantar samba, é porque esperei 10 anos. Quando eu falei: "Nossa, o samba, bem que eu podia escrever”, já calei a boca na hora. Esperei 10 anos.
Por mais que eu faça parte de uma roda de samba, faça parte da ala de compositores do Pagode da 27 há quase 20 anos, isso não me dá o direito de achar que eu posso. Todo mundo pode, mas estou falando de mim. Por favor, não estou imputando isso ao outro, estou falando de mim.
A gente acaba não sabendo, mas tem sempre alguém produzindo um pequeno milagre na sua rua, no seu bairro, na sua comunidade.
CRIOLO
Cantor, compositor e ator
Eu não sabia se eu tinha condições. O samba é para todos, mas será que eu, Kleber, tenho condições? Então, tive que esperar minha vez, comigo mesmo. Não foi nem com ninguém, porque a arte não sugere competição. Quem sugere competição é o homem. Eu tive que esperar minha vez na fila para poder fazer, assim como se eu fizer um novo disco de rap, eu vou estar na fila em uma fila de 20 anos.
Tem alguém da cena do Rio Grande do Sul que tu curtas, que tenha te inspirado de alguma forma?
Há muitos anos, eu gostava muito do disco do Da Guedes. Nossa, mano, bateu aqui em São Paulo. E bateu pesado, o Da Guedes bateu pesado.
Então, o Da Guedes veio forte, assim como os sons de Brasília, sons de Campinas sempre foram muito respeitados em São Paulo. Isso é um recorte bem específico de rap.
O Da Guedes sempre veio muito forte e a cena de grafite é muito forte aí também, o hip-hop é muito forte, o skate é muito forte. Então, as influências vão para além da música.
E, Criolo, tu achas que ainda há tempo para o ser humano?
Sempre. Se eu desistir do ser humano, se eu desistir da minha espécie, acabou tudo. A gente não pode desistir da gente, e tem muita gente fazendo coisas maravilhosas, mas que não tem espaço. A gente acaba não sabendo, mas tem sempre alguém produzindo um pequeno milagre na sua rua, no seu bairro, na sua comunidade.
E esses pequeninos pontos de luz vão ajudando a iluminar o dia para chegar o amanhã, para termos um amanhã. Então, a gente não pode desistir nunca da gente, jamais.

