
Por mais estranho que possa soar, é preciso admitir: Porto Alegre é a capital brasileira do rock argentino. Para se ter ideia, no último dia 8, a capital gaúcha recebeu duas atrações relacionadas ao país vizinho: Kevin Johansen e Liniers, no Auditório Araújo Vianna, e o 1º Cerati Day, reunindo um supertime de músicos gaúchos para homenagear Gustavo Cerati (1959-2014), um dos maiores artistas da Argentina.
Retrocedendo um pouco no tempo, o cantor argentino Andrés Calamaro se apresentou no bar Opinião em abril. Antes, em novembro de 2024, foi realizado o Chisme Festival no Jockey Club, com a finalidade de promover a cultura da fronteira entre Rio Grande do Sul, Argentina e Uruguai. Também há o bar Milonga, na Travessa dos Venezianos, que costuma abrir espaço para essa cultura.
Ao longo das décadas, a cidade recebeu artistas e bandas da Argentina de diferentes gêneros, como Él Mató a un Policía Motorizado, Bersuit Vergarabat, Ratones Paranoicos, Charly García, Perotá Chingó, Inmigrantes, Fun People (e também o Boom Boom Kid, projeto solo do vocalista Carlos Rodríguez), Mercedes Sosa e, entre outros, Fito Páez.
Por aqui, também há projetos que ressoam a produção dos hermanos, como a banda Yustedes, que tem um show com repertório formado por canções de Charly e Fito. Outros cantores da Capital, como Jei Silvanno e Yanto Laitano, já apresentaram shows explorando músicas do rock da Argentina.
Sonoridade familiar
Para o argentino radicado em Porto Alegre Hernan González, há influências do rock de seu país de origem nas bandas gaúchas.
Guitarrista da banda Vera Loca (que tem como um de seus maiores sucessos Borracho y Loco, versão de Lamento Boliviano, do grupo argentino Los Enanitos Verdes), ele defendeu no ano passado a dissertação de mestrado "'Rock Gaúcho': Uma etnografia musical entre o Rio Grande do Sul e o Rio da Prata" pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
— Quando vim morar aqui, em 1997, comecei a tocar e a ter contato com muitos músicos. Vi que muita gente do rock gaúcho ouvia rock argentino. Também vi uma certa familiaridade na sonoridade entre o rock gaúcho e as bandas do meu país, como TNT e Garotos da Rua, principalmente — relata González.
Acho que a influência do rock argentino no rock gaúcho é muito pequena diante do número de bandas e artistas maravilhosos que existem por lá
FRANK JORGE
Músico que vive entre Porto Alegre e Buenos Aires
Na pesquisa, ele aponta que "um número considerável de artistas gaúchos cita e procura inspiração no rock argentino".
"Essa influência pode ser atribuída à proximidade geográfica e às trocas culturais constantes entre o Rio Grande do Sul e a Argentina. Além disso, há uma influência significativa da música urbana gaúcha que precedeu o rock, com elementos de ritmos locais e tradições musicais sendo incorporados ao novo gênero", segue o texto.
"Trabalho de formiguinha"
Conforme González destaca na publicação, os fluxos entre o rock gaúcho e o argentino "se manifestam de maneiras complexas e interconectadas", sendo intensificados pela globalização, que "facilita a troca de influências culturais e musicais através de meios de comunicação e tecnologias digitais", além da proximidade geográfica do Estado com o país.
Ele ressalta que há convergência entre o rock gaúcho e o argentino com aproveitamento de elementos regionais e abordagem de temas relacionados à identidade local. Pelo lado do RS, nomes como Nenhum de Nós, Vera Loca, Esteban Tavares e Frank Jorge já apresentaram influências do rock argentino em seus trabalhos.
Aliás, no ano passado, Frank lançou o disco Un Tipo Muy Raro, com canções em espanhol e influências de nomes argentinos como Los Auténticos Decadentes, Andrés Calamaro, Charly García e Fito Páez. Hoje, ele vive entre Porto Alegre e Buenos Aires.
— Acho que a influência do rock argentino no rock gaúcho é muito pequena diante do número de bandas e artistas maravilhosos que existem por lá — destaca Frank. — É um trabalho de formiguinha, de muita gente tocando na noite de Porto Alegre vários destes artistas.
Disco surpreendente
O comunicador Mauro Borba, da 102.3, foi um dos principais responsáveis pela presença de artistas do rock argentino nas rádios de Porto Alegre. Tudo começou em meados dos anos 1980, quando trabalhava na rádio Ipanema.
Ele lembra que foi apresentado a Charly García por Thedy Corrêa e Sady Homrich, integrantes do Nenhum de Nós que costumavam viajar para a Argentina e garimpar discos por lá. Até então, Mauro não conhecia nada de rock argentino. Ao ouvir Clics Modernos, álbum de 1983 do cantor, surpreendeu-se.
— Quando eles trouxeram o Clics Modernos, um portal se abriu para mim: "Caramba! Os caras fazem um negócio desse aqui do lado, e eu não conheço". Depois, a gente vai estudando e pesquisando — relata o comunicador.
Mauro passou a tocar Charly na rádio. Com o passar do tempo, foi aumentando o leque de artistas, incluindo Fito, Soda Stereo, Los Fabulosos Cadillacs, Ratones Paranoicos, Sumo e Bersuit Vergarabat, entre outros.
Devoção pelo rock argentino
A boa repercussão desses nomes na rádio renderam shows na capital gaúcha. Muitas vezes, essas apresentações dos hermanos ocorreram no bar Opinião ou foram realizadas pela Opinião Produtora — desde artistas como Fito e Charly, que voltaram ao Estado em diferentes ocasiões, a nomes mais alternativos, casos de Perotá Chingó e Él Mató a un Policía Motorizado.
Gabriel Souza, sócio-diretor da Opinião Produtora, observa que, talvez pela proximidade, há muito tempo o Rio Grande do Sul é um ótimo mercado para a música latina em geral. Ele acrescenta que sempre houve uma aposta das gravadoras para que esses artistas, sobretudo do rock argentino, tivessem espaço nas rádios e fizessem shows na cidade.
— Notamos que há em Porto Alegre fãs que acompanham com certa devoção artistas do rock argentino, principalmente o Fito Páez — diz Gabriel. — São pessoas que conhecem os discos, as músicas e dominam o repertório. Acho muito difícil que isso se repita em outro lugar do Brasil.
Homenagem a Gustavo Cerati
Gustavo Cerati nunca se apresentou em Porto Alegre — nem com a banda Soda Stereo nem em carreira solo. Apesar de seu grupo ser apontado como um dos maiores da América Latina, nunca estourou no Brasil. No máximo, a versão de um de seus sucessos, De Música Ligera, ganhou as rádios do país com uma versão do Capital Inicial, intitulada À Sua Maneira.
Porém, Cerati é muito cultuado não só na Argentina mas no restante do continente. Pela América Latina, todo ano são realizadas diferentes formas de tributo ao cantor.
No Brasil, coube a Porto Alegre receber o primeiro tributo mais expressivo. Na última quinta-feira (8), o 1º Cerati Day encheu totalmente o Sgt. Peppers Pub com centenas de fãs.
Subiram ao palco músicos como Frank Jorge, Marcelo Gross, Lara Rossato, Pirisca Grecco, João Maldonado, Veco Marques (Nenhum de Nós), o argentino radicado em Porto Alegre Andy Pugliese (baixista do projeto solo de Gross) e, entre outros, um trio da Vera Loca — Fabrício Beck, Hernán González e Felipe "Mumu" Bortoluzzi — para interpretar canções da carreira solo de Cerati e do Soda Stereo.
Conexão natural
A ideia do tributo partiu do empresário Ilton Carangacci, que trabalha com diferentes bandas gaúchas. Para ele, o rock latino está mais presente na Capital do que parece, pois os ingressos para o Cerati Day se esgotaram 30 dias antes do evento. Tanto que Ilton já está agendando uma segunda edição ainda para este ano e vendo a possibilidade de estender o tributo a outras cidades.
— A nossa conexão com a cultura de todo o Prata é muito natural — atesta. — A música brasileira sempre teve reconhecimento na América Latina, mas acho que chegou o momento de a gente conhecer mais o que eles fazem e criar um caminho mais efetivo para shows. O (Andrés) Calamaro veio em abril e foi épico. Já existem algumas conexões de bandas daqui com as de lá, mas essa estrada tem muito para se ampliar.