
Uma das maiores escritoras contemporâneas do Brasil, Martha Medeiros celebra 40 anos do lançamento de sua primeira obra, o livro de poemas Strip-Tease, com uma homenagem de alto nível: foi escolhida patrona da 71ª Feira do Livro de Porto Alegre.
Em entrevista a Zero Hora, a porto-alegrense de 64 anos relembra a relação de uma vida inteira com o evento, que vem desde a época de estudante, quando economizava a mesada para comprar alguns títulos nas bancas, até o momento de ela própria passar a autografar exemplares de sua autoria.
Em um mundo tão acelerado como o atual, Martha defende que a leitura só traz benefícios, pois é uma forma de se conhecer outras realidades e se tornar menos preconceituoso e mais tolerante, além de ajudar a reconhecer as nossas próprias dores.
A autora, que se tornou conhecida não apenas por seus mais de 30 livros, mas também por suas crônicas publicadas há três décadas em Zero Hora e há duas em O Globo, celebra o posto de nona patrona do sexo feminino da história da Feira do Livro. E leva consigo uma convicção: é tempo de as mulheres colocarem a sua voz, depois de tantos anos de literatura feita por homens falando sobre elas.
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Como está sendo a experiência de ser a patrona da Feira do Livro? Demorou para vir o convite?
Eu sempre imaginei que isso fosse acontecer um dia. Todo mundo diz que demorou, mas foi no momento exato, porque este é um ano muito especial para mim: completo 40 anos desde o lançamento do meu primeiro livro.
Houve uma época em que a Feira elegia 10 candidatos e depois escolhia um. Eu cheguei a participar dessa seleção, mas não gostei muito, parecia uma competição entre colegas. Achei que não combinava com o espírito da feira.
E, naquela época, eu estava muito envolvida com filhos e não teria como me dedicar da forma que um patrono precisa. Agora é outro momento da minha vida. Tenho uma carreira mais sólida e me sinto mais preparada e merecedora. Então, acho que o convite veio na hora certa, não demorou nada.
És a nona mulher a ocupar o papel de patrona da Feira do Livro. Ainda é difícil uma mulher chegar a esse posto?
Acho que isso está mudando. Não adianta chorar pelo atraso, porque claramente as coisas estão se transformando.
Tenho a impressão de que, daqui para a frente, virão muitas outras mulheres, até porque há muitas escritoras excelentes, talentosas, representativas da literatura. O mercado editorial deve muito às mulheres.
Há muita produção feminina hoje no país inteiro. É o momento de a mulher colocar sua voz depois de tanto de literatura feita por homens falando sobre mulheres. Isso mudou. Claro que ainda é preciso equalizar, mas não vou ficar lamentando o passado. Isso tem a ver com a velha estrutura patriarcal, mas está mudando.

Falaste que, quando foste convidada antes, estavas envolvida com a maternidade. E agora estás também nessa função de cuidadora.
É outro tipo de maternidade. Meus pais não são meus filhos, claro, mas o papel é esse de cuidado. Isso me surpreendeu, porque eu sempre imaginei que, depois dos 60, com as filhas criadas, seria a hora de botar a mochila nas costas e viajar. Eu adoro liberdade, adoro viajar.
De repente vem esse susto, que nem deveria ser um susto, porque é natural que os pais envelheçam. Mas a gente entra na vida de roldão e acha que está tudo certo. Aí precisa puxar o freio de mão e voltar para dentro de casa, cuidar dos outros.
Tem um lado bom nisso, de união familiar, mas é complicado, porque também estamos envelhecendo. Eu também estou envelhecendo e não tenho mais tantos anos de energia total. Então, a gente vai negociando com a própria vida. Este, para mim, foi um ano de dedicação total à família e ao trabalho. Isso também sou eu.
Claro que penso: "Por que eu?" Há tanta gente boa escrevendo. Eu só tive a sorte de ter um espaço no jornal. Com o tempo, cria-se um hábito, um vínculo com o leitor.
MARTHA MEDEIROS
Qual foi a tua relação com a Feira do Livro ao longo da vida?
A Feira era o meu parque de diversões. Eu estudava no (Colégio) Bom Conselho, na Ramiro Barcelos, e lembro de sair a pé pela Independência até o Centro para ir à Feira. Economizava a mesada para comprar um livro escolhido com muito cuidado.
Sempre foi um momento mágico, porque eu já gostava de ler e escrever. Era um evento que eu aguardava o ano inteiro. Depois, quando comecei a publicar poesia, virei autora da Feira.
Lembro da minha primeira sessão de autógrafos, em que caiu um temporal e quase ninguém apareceu. De repente, surge o Ruy Carlos Ostermann, que pediu meu autógrafo. Eu fiquei emocionada, porque ele era uma figura admirada, e eu, uma jovem desconhecida. Foi um gesto generoso e, por isso, hoje quero fazer o caminho inverso: estimular quem está começando.
Quem te ajudou no início?
A Tânia Carvalho foi a primeira pessoa que me chamou para um programa de entrevistas, em 1985. Eu gaguejei do começo ao fim, mas nunca esqueci. Ela é uma grande jornalista, e me dar aquele espaço foi importante.
O Luciano Alabarse também foi fundamental: ele deu um livro meu de presente para o Caio Fernando Abreu, que depois me procurou e escreveu a orelha de um livro meu. Era uma época sem internet, tudo acontecia no boca a boca. Um lia, indicava para outro, e assim eu fui crescendo devagar, com o olhar generoso de quem já era mais experiente.
Tu foste publicitária por 14 anos. Como foi essa transição para a literatura?
Eu era redatora, trabalhava em agência, escrevia textos para vender produtos, liquidificador, curso pré-vestibular. Não era a minha voz.
Paralelamente, eu escrevia diários, textos pessoais. Em determinado momento, esses diários viraram poemas. Comecei a ler poetas da coleção Cantadas Literárias, da (editora) Brasiliense, e percebi que a poesia podia ser urbana, direta, como a que eu fazia.
Enviei meus poemas para o editor da coleção, e ele respondeu com uma carta manuscrita dizendo que gostava do que eu escrevia. Lançamos meu primeiro livro pela Brasiliense. Ele veio à Feira do Livro me conhecer pessoalmente. Foi mesmo um conto de fadas.
E daí em diante seguiste publicando.
Sim. Depois lancei livros pela L&PM, aqui em Porto Alegre. Achava que ficaria só na poesia, mas então fui morar no Chile e comecei a escrever textos que o Dinho, o Fernando Eichenberg, que trabalhava na Zero Hora, levou para o jornal.
Quando voltei, me convidaram para publicar um texto na revista Donna (de Zero Hora). Os leitores gostaram e vieram novos convites. E cá estou. Tenho 31 anos de Zero Hora e 21 de O Globo. É muito tempo com coluna ininterrupta.
Crônica é obrigação: tem que sair, inspirada ou não. Poesia é desejo. Então, ela vai ficando para o fim da fila.
MARTHA MEDEIROS
Em todo esse tempo, nunca tiveste síndrome da impostora?
Todo santo dia. Mas virou minha profissão, então sigo em frente. Claro que penso: "Por que eu?" Há tanta gente boa escrevendo. Todo mundo tem algo a dizer. Por que a minha opinião é mais importante? Não é. Eu só tive a sorte de ter um espaço no jornal. Com o tempo, cria-se um hábito, um vínculo com o leitor. E isso se mantém. Mas poderia ter sido outra pessoa se tivesse tido a mesma oportunidade.
Ainda escreves poesia?
Escrevo, mas pouco. Lancei um livro de poemas há dois anos, reunindo textos de gaveta. Neste ano, a L&PM está relançando minha Poesia Reunida. É um ano de celebração, não de inéditos.
Mas é difícil, porque poesia exige mais tempo, mais conexão emocional. E eu mal tenho tempo para escrever crônica. Domingo de manhã é o meu dia mais produtivo: a cidade silenciosa, o celular quieto. É quando escrevo. Crônica é obrigação: tem que sair, inspirada ou não. Poesia é desejo. Então, ela vai ficando para o fim da fila.
E de onde vêm as ideias para as crônicas?
Da vida. Às vezes de uma conversa, de uma notícia, de uma viagem. De tudo um pouco.
Te manténs atualizada das notícias para escrever as crônicas?
Sim. Hoje não tem como não estar informada. Mesmo sem ver TV, as notícias chegam por recortes de redes, podcasts, vídeos. O problema é que tudo vem fragmentado. Junto com as boas informações vem muito lixo, e isso exige pausa.
As redes sociais te atrapalham?
Muito. Eu uso e abuso delas, porque são minha vitrine. Divulgo agenda, lançamentos, autógrafos. É a mídia que tenho. Mas, ao mesmo tempo, acho uma egotrip total. Me envergonho um pouco. E roubou tempo de leitura, sem dúvida. Continuo lendo bastante, mas menos. Também rouba o tempo de não fazer nada, que é essencial.
Fico feliz por ter tido minhas filhas em uma época mais analógica, porque nos álbuns (de fotos) eu ainda me sinto dona do meu passado.
MARTHA MEDEIROS
As redes sociais nos deixam mais ansiosos, né?
Totalmente. Às vezes me pego vendo coisas que não sei por que estou vendo. Não preciso saber de tudo. Não é por acaso que há uma onda de busca pelo analógico, como vinil, polaroide, fotografia impressa. As pessoas estão saturadas. A gente se desconectou da emoção. Tudo é rápido, instantâneo.
E onde fica o tempo para assimilar o que se sente? A literatura, nesse contexto, fica ainda mais importante. O livro tem tudo para se beneficiar desse resgate da subjetividade.
Ainda revelas fotos?
Não mais, mas tenho álbuns antigos de viagens e das filhas pequenas. Isso me conforta. Às vezes, abro um álbum e viajo de novo. É uma forma de estar presente.
Acho que hoje a gente perdeu essa sensação de posse. Tudo está no celular, mas nada é realmente nosso. Fico feliz por ter tido minhas filhas em uma época mais analógica, porque nos álbuns (de fotos) eu ainda me sinto dona do meu passado.
Tu dizes que há muita gente boa escrevendo hoje. Como elas surgem num mundo tão acelerado e digital?
Porque ainda há gente lendo. E, se tem gente lendo, vai ter gente que escreve. A literatura é base para tudo: para o cinema, para a música, para a arte. Enquanto houver leitura, haverá criação.
A leitura também desenvolve empatia?
Sem dúvida. É a forma de conhecer outras realidades. Eu não convivo com imigrantes, presidiários ou pessoas que passam fome, mas a literatura me apresenta essas vidas.
Ler nos torna menos preconceituosos e mais tolerantes. Um mundo sem livros seria árido. E ler também ajuda a reconhecer as nossas próprias dores. Quando alguém descreve o que tu sentes e não sabes nomear, vem o alívio: "É isso que eu sinto". Ler deveria ser obrigatório.
Temos visto censura a obras literárias, inclusive em escolas. O que pensas disso?
De fato, há uma onda de censura, especialmente de livros infantis, sob o pretexto de proteger. É absurdo. A história de O Avesso da Pele, do Jeferson Tenório, por exemplo, foi um absurdo. Escrevi uma crônica sobre isso. É reflexo da ascensão da extrema-direita.
O mundo está mudando rápido, muita gente está ganhando voz: mulheres, negros, pessoas LGBTQIA+. Antes, esses grupos ficavam em guetos. Agora estamos tentando incluir todo mundo, e isso é necessário, não é benevolência. É reparação. Mas há quem não suporte perder privilégios e reaja tentando manter o próprio posto. Daí vêm as tentativas de censura, de regressão. É uma reação careta a um momento mais democrático.
Eu não convivo com imigrantes, presidiários ou pessoas que passam fome, mas a literatura me apresenta essas vidas. Ler nos torna menos preconceituosos e mais tolerantes.
MARTHA MEDEIROS
Vivemos uma época mais careta?
Sim, muito. E é curioso, porque já tivemos momentos mais libertários. O que se via na TV, como TV Pirata, Armação Ilimitada, tinha mais liberdade. Claro que havia piadas erradas, o que felizmente está mudando, mas nada era perseguido.
Hoje, há uma infantilização da sociedade. Tudo é "não pode". Criança não pode ver isso, não pode ouvir aquilo. Eu cresci ouvindo o que meus pais ouviam, Beatles, Janis Joplin, e lendo os livros que havia em casa. Agora parece que se trata todo mundo como criança.
Mas há também patrulhas vindas da esquerda, não?
Existe patrulha, sim. Às vezes é chata, mas necessária. Claro que me policio, às vezes digo algo numa conversa e penso: "Isso eu não poderia dizer numa entrevista". Mas é assim que o mundo muda. É incômodo, mas precisamos nos habituar a não usar certos termos.
Alguns pesquisadores têm discutido a ideia de que estamos priorizando o conteúdo em detrimento da forma na literatura. O que pensas disso?
Acho pretensioso alguém determinar o que é ou não é literatura.
O que é literatura para ti?
Escreveu e publicou, é literatura. Pode ser boa ou ruim. Literatura é intenção por escrito que pode ser bem ou malsucedida. O que define se deu certo ou não é a conexão com o leitor. Não existe literatura sem leitor. Se ninguém ler Grande Sertão: Veredas, ele não existiu.
Literatura é o que conecta, o que provoca alguma reação, seja de encantamento ou de rejeição. Essa história de que Itamar Vieira Junior ou Elena Ferrante não seriam literatura é absurda. É apenas tentativa de polemizar.
E como é a tua relação com os leitores?
Já foi mais intensa. Antigamente, as pessoas mandavam longos e-mails. Hoje, são mensagens curtas nas redes: "Adoro", "Você me ajudou muito". É tudo rápido. Mas, de vez em quando, recebo um texto longo, contando uma história de vida, e isso é muito gratificante.
Minhas crônicas são conversas na sala, que é, inclusive, o nome de um dos meus livros. Falo como uma mulher comum sobre temas gerais, e o leitor responde, concordando ou discordando. Isso é troca.
Há quem não suporte perder privilégios e reaja tentando manter o próprio posto. Daí vêm as tentativas de censura, de regressão.
MARTHA MEDEIROS
Há algo que ainda queiras realizar na tua carreira?
Gostaria de escrever melhor. De ser uma ficcionista melhor. Já publiquei alguns romances, mas sem tanta técnica. Gosto muito de ficção e gostaria de me aprimorar.
Tenho vontade também de escrever sobre a minha infância, fazer uma revisitação da vida. Talvez seja algo muito pessoal, não sei se publicarei. O Luis Fernando Verissimo disse uma vez que gostaria que eu fosse mais pessoal ainda, sendo que eu já sou, e isso ficou na minha cabeça. Talvez, com o tempo, eu tenha coragem de me expor mais, de abrir minhas dores e alegrias de forma mais íntima. Talvez eu faça uma autoficção um dia.
Para concluir: como patrona, quais livros indicas para quem for à Feira?
Dou quatro sugestões de livros, todos de autoras gaúchas: A Mulher de Dois Esqueletos, de Julia Dantas; Dias de se Fazer Silêncio, de Camila Maccari; Da Sempre Tua, de Claudia Tajes e Diana Corso; e O Pássaro e a Faca, de Daniele Kipper.



