
Ao longo de seus 78 anos, Francisco Paulo Sant'Ana foi grande demais para ser somente um. Era Paulo, sim. Mas também era Pablo. Ou Pablito. Ou Chico. Era a personificação do gremismo delirante. Era colunista e comentarista. Cantor. Boêmio. Feirante. Era amado e contestado. Podia ser personagem, mas era Sant'Ana.
Essas diferentes nuances do cronista estão presentes nas 286 páginas de Paulo Sant'Ana — O Gênio Indomável (editora AGE, R$ 95). Escrita por Márcio Pinheiro, a biografia terá evento de lançamento em Porto Alegre nesta terça-feira (22), a partir das 18h30min, na livraria A Página, no Shopping Praia de Belas.
Um dos maiores comunicadores da história do Rio Grande do Sul, Sant'Ana partiu em 17 de julho de 2017, deixando mais de 16 mil textos em sua coluna de Zero Hora. Durante mais de 40 anos, integrou o Grupo RBS, onde, entre outras atuações, se notabilizou como integrante do Sala de Redação e comentarista do Jornal do Almoço.
Unidos pela música brasileira
As próprias colunas em Zero Hora ajudaram a abastecer a biografia. Além da pesquisa, mais de 30 entrevistas foram realizadas com colegas, amigos, parentes e médicos de Sant’Ana.
O projeto surgiu no início de 2024, partindo de uma ideia de Fernando Ernesto Corrêa, acionista do Grupo RBS. Amigo de Sant'Ana desde os anos 1970, ele sentia que talvez o comunicador pudesse estar sendo esquecido. A biografia é, então, uma forma não só de manter o cronista ativo no imaginário como de deixar um registro aprofundado de sua trajetória.
Autor de obras como Rato de Redação: Sig e a História do Pasquim e Esse Tal de Borghettinho, Márcio conhecia Sant'Ana desde jovem. O jornalista é filho do advogado e político Ibsen Pinheiro, que participou com Sant’Ana do Sala de Redação — mas como "voz" do Internacional. Márcio recorda que, em sua primeira passagem por Zero Hora, já se dava bem com o cronista; porém, não eram "da mesma turma".
Quando retornou ao jornal, em 2003, aí sim se aproximaram. Criaram laços por meio da paixão pela música brasileira.
— Às vezes, ele me testava: "Márcio, de quem é esta música?". Cantava um trecho e eu pá, matava — recorda o biógrafo. — Um dia, ele escreveu uma crônica em que dizia: "Estava conversando agora com o Márcio Pinheiro, o segundo cara que mais entende de música brasileira na Zero Hora". Aí, claro, o primeiro era ele.
Música, Carnaval e Grêmio
Na biografia, Márcio optou por não seguir necessariamente uma ordem cronológica — embora repasse as vivências de Sant'Ana desde a infância. Cada capítulo aborda uma faceta do comunicador, como as relações familiares, as amizades, as passagens profissionais, os conflitos, as compulsões (jogatina, cigarros e doces), a saúde, as angústias ou suas paixões — o que inclui música, Carnaval e o Grêmio.
Além da abertura escrita por Fernando Ernesto Corrêa, há um prefácio "assinado" por Sant'Ana, criado com auxílio da ferramenta de inteligência artificial DeepSeek a partir de seu estilo. Conforme Márcio destaca na biografia, assim o comunicador pôde "ressurgir e ter acesso a algo que sempre desejou: saber como ele seria lembrado depois de sua morte".
A chegada ao "Sala de Redação"
Sant'Ana foi baleiro, feirante, inspetor, delegado de polícia e vereador, entre outras ocupações, mas começou a se projetar como comentarista esportivo no Sala de Redação, em 1971. Naquele período, costumava visitar Zero Hora e palpitava no programa incipiente.
Em pouco mais de um mês, o então diretor de redação de ZH, Lauro Schirmer, decidiu que seria melhor formalizar a participação de Sant'Ana. Procurou o dono da empresa, Maurício Sirotsky, e sugeriu que o comentarista recebesse uma quantia fixa de 200 cruzeiros. Por sua vez, Maurício propôs que fossem oferecidos 400 cruzeiros e que Sant'Ana passasse a escrever em uma coluna diária no jornal, na editoria de Esportes.
Dito e feito. Em 1989, o colunista se transferiu para a penúltima página, onde passaria a escrever também sobre generalidades. Ao mesmo tempo, criaria laços de amizade com Maurício, que se estenderia aos filhos Nelson e Pedro.
A voz da torcida do Grêmio
Do princípio ao fim, Sant'Ana chamou atenção por seu amor ao Grêmio. Essa paixão tem destaque na biografia. São relembrados o Gre-Nal de 1961, em que ele se vestiu de Papai Noel azul, e a vez em que desmaiou (ou simulou um desmaio) durante o Jornal do Almoço após a conquista do Brasileirão de 1981.
Há um capítulo intitulado "Paixão e ódio nos gramados gremistas", em que Márcio revisita a relação de Sant'Ana com jogadores do Grêmio: sua idolatria por Renato Portaluppi, que costumava visitar a redação de ZH para conversar com o cronista nos anos 1980 (aliás, o hoje técnico do Fluminense é um dos entrevistados do livro); a fascinação inicial e a posterior frustração com Ronaldinho Gaúcho e a perseguição ao goleiro Marcelo Grohe.
Na biografia, o ex-presidente do Grêmio Paulo Odone destaca que o comentarista era a voz da torcida, para o bem e para o mal. Podia inflamar a torcida com base na performance intuitiva e exagerada. O escritor resume:
— Nesse capítulo, dá para ver muitas dessas facetas do Sant'Ana: a capacidade que ele tinha de amar, de idolatrar, de se entregar para uma pessoa e, ao mesmo tempo, vir a desprezar, boicotar ou até odiar a família.

O gênio e suas contradições
Em suas crônicas, Sant'Ana se notabilizou pela retórica teatral, às vezes aumentando as histórias e alimentando o folclore em torno de si. Ao mesmo tempo, também expunha sua intimidade — um exemplo é o famoso relato "Usei o Viagra", que ganhou um capítulo na biografia — e tocava em feridas, como a relação conturbada com o pai, que o agredia constantemente na infância. Era coração aberto.
— A coluna trazia tudo do Sant'Ana: os sentimentos, os traumas, as alegrias, as paixões. Claro que algumas coisas você tem que filtrar, porque ele era exagerado, mas dava para entendê-lo — relata o autor.
Márcio apresenta a personalidade cativante do cronista, mas também suas contradições: a vaidade, as inseguranças, a carência, as opiniões polêmicas. Sant’Ana era um homem só, que precisava estar rodeado de pessoas, como realçam depoimentos de amigos no livro.
A força da intuição
A biografia traz também uma pessoa bastante carinhosa e empenhada com tudo e todos que amava. Um showman bem-humorado, envolvente com as palavras e fonte de tiradas brilhantes. Uma figura empática com as mazelas sociais. Como colunista, tinha um olhar apurado, trazendo assuntos que se transformavam em pautas de reportagens posteriormente.
— A genialidade dele tem muito a ver com a intuição. Era um homem de uma capacidade imbatível de entender as coisas da cidade, da vida que o cercava — explica Márcio. — Era de uma sensibilidade fora de série, com capacidade de entrar em uma conversa e captar logo o que estamos conversando.

Leia trecho da biografia
Em uma crônica, Sant'Ana contou que fazia compras em um supermercado e que, ao chegar ao caixa para fazer o pagamento, a moça que o atendia estendeu a ele um papel e uma caneta e pediu que ele lhe desse um autógrafo. Sant'Ana concordou e atendeu ao pedido da funcionária. Na sequência, ela lhe passou outro papel, com um novo pedido: agora o autógrafo era para o pai dela. Sant'Ana novamente concordou. Passado esse momento de tietagem explícita, Sant'Ana, com as compras finalizadas, preencheu um cheque, assinou e entregou à moça. Foi então que ela pediu a ele um documento de identificação.
Sant'Ana indignou-se e começou, segundo ele, "uma amável discussão no supermercado". Ele pediu que chamassem o gerente e, com a chegada do profissional, Sant'Ana perguntou por que exigiam a identidade dos fregueses. O funcionário argumentou que eram tantos os clientes, uma maioria esmagadora de desconhecidos, que a cautela se tornava imprescindível. Aí Sant'Ana argumentou que ele não era um desconhecido. Tanto não era que a moça da caixa o reconheceu, disse que o admirava e lhe pediu dois autógrafos. O gerente, embora não convencido pelos argumentos do cronista, parecia disposto a liberar o cheque de Sant'Ana. Mas, embora insatisfeito, porém sem a intenção de que a polêmica se alongasse, o próprio Sant'Ana sacou a carteira de identidade e deu fim à discussão.
Mas antes que a história terminasse haveria ainda mais um toque de absurdo: ao conferir a assinatura que estava no documento, a moça pediu que Sant’Ana refizesse os autógrafos, já que as assinaturas dos papéis não batiam com as da carteira. "Obedeci depressa e refiz", revelou Sant'Ana. "Fiquei com medo de ser preso em flagrante por crime de passar autógrafos sem fundos".



