
Correção: a crise de narrativa já percebida é de ficção, e não de não ficção como publicado entre 11h41min de quinta-feira (22) e 13h55min de sexta-feira (23). O texto já foi corrigido.
A lista dos 10 livros mais vendidos do Brasil em 2025 divulgada pelo site especializado PublishNews (consultada em 21 de maio) traz apenas uma obra de literatura de não ficção: Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva. Os demais integrantes do ranking são três livros de colorir, dois devocionais, dois de negócios, um de autoajuda e um voltado para o público infantojuvenil (veja a lista completa ao final).
No topo do ranking está o livro de colorir Do Dia para a Noite, da ilustradora e designer norte-americana Abbie Goveia, que tem outros dois títulos da série de obras Bobbie Goods entre os quatro mais vendidos, todos publicados pela HarperCollins (leia abaixo como a editora interpreta esse panorama).
Zero Hora ouviu especialistas em literatura e mercado editorial para entender se a configuração da lista representa um recorte momentâneo ou se os leitores estão de fato lendo menos literatura narrativa.
Conforme os entrevistados, o cenário atual ainda reflete o impacto do confinamento das pessoas durante a pandemia de covid-19 e um processo de desaceleração em oposição à velocidade das mudanças no mundo atual e da instantaneidade das redes sociais.
Livros de colorir como terapia
O presidente da Câmara Rio-grandense do Livro, Maximiliano Ledur, afirma que a procura por livros de autoajuda já é uma tendência há alguns anos. Portanto, o fato de o gênero figurar em relações do tipo não é surpresa.
— As pessoas estão buscando nos livros alternativas para essa evolução humana que está cada vez mais rápida. Sempre digo que o livro é a base para tudo — observa, destacando que a linguagem usada na maioria dessas obras é mais acessível.
Em relação à ascensão dos livros de colorir, Ledur menciona o que tem sido repetido por médicos e terapeutas:
— O livro de colorir serve como auxílio nas terapias para diminuir a ansiedade e ajuda em vários fatores terapêuticos. Então, reflete essas mudanças.
Para Ledur, a busca por esse tipo de leitura acelerou-se na pandemia de covid-19. Naquele momento, não era recomendada a interação social. Ou seja, as pessoas ficaram mais recolhidas e obtiveram ajuda para suas angústias por meio dos livros.
O livro de colorir serve como auxílio nas terapias para diminuir a ansiedade e ajuda em vários fatores terapêuticos
MAXIMILIANO LEDUR
Presidente da Câmara Rio-grandense do Livro
— Muita gente perdeu emprego e família. Sem poder falar com os outros, as pessoas foram buscar ajuda por meio dessa literatura — diz. — Lógico que existe literatura ruim em todas as partes. Tem autoajuda que é charlatanismo. Mas se olharmos os mais vendidos e as avaliações dos leitores, esses livros têm notas máximas. E, às vezes, os autores são excelentes. Tem coisa boa ali.
Concorrência das telas
A professora de Literatura e Língua Portuguesa Caroline Becker, do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ressalva:
— Comprar livros não quer dizer ler livros. Temos a pesquisa Retratos da Leitura do Brasil, do Instituto Pró-Livro, que observou que houve uma diminuição de leitores (perda de 6,7 milhões de leitores entre 2019 e 2024).
A professora explica que a circulação dos bens culturais e como eles aparecem nas redes sociais influencia o que vamos consumir:
— A lista do PublishNews tem alguns livros com a questão de pintar, o que tem relação com a arte em alguma medida. Mas isso não é leitura literária. E conta com outro livro que teve adaptação concorrendo ao Oscar (Ainda Estou Aqui). A verdade é que a literatura, enquanto narrativa, está aparecendo pouco nesta lista e é um indicativo de como nos relacionamos com a ficção.
Temos consumido mais streamings, séries e filmes. E efetivamente o que mais fazemos é ficar no celular
CAROLINE BECKER
Professora de Literatura e Língua Portuguesa do Colégio de Aplicação da UFRGS
A professora enumera as opções de consumo que assumiram o espaço que os livros ocupavam na vida das pessoas antes do avanço tecnológico:
— Se lemos menos literatura, temos que pensar dentro da história de leitura que bens consumimos culturalmente. Temos consumido mais streamings, séries e filmes. E efetivamente o que mais fazemos é ficar no celular.
Religiosidade voltada à prosperidade
O professor de Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Arthur Beltrão Telló ressalta que a crise da narrativa de ficção não é tão nova.
— O Shalamov (Varlam Shalamov, escritor e jornalista russo, 1907-1982) tem um ensaio em que escreve que os leitores do começo do século 20 mediam suas próprias trajetórias de vida a partir dos livros. Só que após duas guerras mundiais e a situação da Guerra Fria, segundo ele, parece que os leitores precisam de uma referência ancorada no plano da realidade para poder mediar subjetivamente suas experiências como seres humanos e as trajetórias possíveis nesse mundo complicado. Talvez a fantasia e a imaginação tenham perdido seu espaço — analisa.
Vivemos em uma cultura que tem, além da espiritualidade e da religiosidade, esse tipo de religiosidade voltada para a prosperidade
ARTHUR BELTRÃO TELLÓ
Professor de Literatura da PUCRS
Questionado sobre as obras da lista de mais vendidos, o professor observa:
— Vivemos em uma cultura que tem, além da espiritualidade e da religiosidade, esse tipo de religiosidade voltada à prosperidade.
Para o professor, Ainda Estou Aqui é a única obra da relação que pode ser considerada literatura:
— Embora o livro do Marcelo Rubens Paiva seja de literatura, pela riqueza literária e pela forma como ele escreve, é um livro ancorado em experiências pessoais dele. É como se fosse uma autobiografia.
Tendência duradoura
Conforme a diretora de Marketing e Vendas da HarperCollins Brasil, Daniela Kfuri, o crescimento da procura por livros de colorir reflete "a busca por alternativas às telas, por momentos de relaxamento e por formas de expressão criativa".
— Mais do que uma moda passageira, esse interesse está alinhado ao desejo do mundo atual de desacelerar, cuidar mais da saúde mental e se reconectar com atividades significativas — reflete.
Dois títulos da série Bobbie Goods (Dias Quentes e Do Dia para a Noite) venderam mais de 1 milhão de exemplares em poucos meses, segundo a editora, que já publicou quatro livros de Abbie Goveia.
— Acreditamos que estamos diante de uma tendência duradoura, que deve continuar a se expandir e a conquistar novos públicos — conclui Daniela.
Mais do que uma moda passageira, esse interesse (por livros de colorir) está alinhado ao desejo do mundo atual de desacelerar, cuidar mais da saúde mental e se reconectar com atividades significativas
DANIELA KFURI
Diretora de Marketing e Vendas da HarperCollins Brasil
Dez livros mais vendidos no Brasil em 2025 (até 21 de maio)
Veja o ranking do site PublishNews com o número de exemplares comercializados:
- Do Dia para a Noite (Day to Night), de Bobbie Goods (HarperCollins) — 140.698
- Café com Deus Pai 2025, de Junior Rostirola (Vélos) — 125.610
- Dias Quentes (Spring Summer), de Bobbie Goods (HarperCollins) — 102.827
- Isso e Aquilo (This & That), de Bobbie Goods (HarperCollins) — 51.810
- Elo Monsters Books: Flow Pack, de Enaldinho (Pixel) — 51.661
- Nunca Jogue uma Ideia Fora, de Sauana Alves (Gente) — 38.019
- O poder da Autorresponsabilidade, de Paulo Vieira (Gente) — 29.173
- Café com Jesus, de Vinícius Iracet (Citadel) — 27.494
- Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva (Alfaguara) — 26.146
- Mais Esperto que o Diabo, de Napoleon Hill (Citadel) — 25.780