
O sofisticado cruzamento entre arte e ciência dá origem à fotografia. Essa gênese, tantas vezes esquecida na era digital, ajuda a entender por que alguns trabalhos fotográficos seguem nos comovendo. A obra de Luiz Carlos Felizardo é um desses casos raros, em que o domínio técnico e o olhar poético transformam a imagem em linguagem — e o preto e branco em território expressivo.

Nascido e radicado em Porto Alegre, Felizardo foi um dos grandes nomes da fotografia brasileira contemporânea. Sua trajetória começa no desenho, que estudou ainda na graduação em Arquitetura na UFRGS, entre 1968 e 1972.
Lá teve contato com cálculo diferencial, desenho geométrico, programação visual e desenho industrial. Foi nesse ambiente acadêmico que ele aprofundou tanto o desenho técnico quanto a percepção estética — elementos que se tornariam a base sólida de sua linguagem visual.

Embora tenha fotografado muitos espaços naturais e urbanos, a paisagem em sua obra nunca foi um fim em si mesma, mas sim uma estrutura para revelar aquilo que realmente lhe importava: as relações entre luz, sombra e textura.

Sua fotografia em preto e branco, marcada pelo refinamento formal, se concentra nas nuances tonais, nos contrastes delicados e na arquitetura precisa da composição. O que se impõe, em cada imagem, é o domínio absoluto dos tons de cinza — seu verdadeiro território de criação.

Disciplinado e rigoroso, Felizardo dominava todas as etapas do processo fotográfico. Adaptou o gesto do desenho à prática da fotografia: escolher a cena, controlar a luz, dominar os tempos, imprimir com exatidão.
Seu controle técnico não engessava o processo criativo — ao contrário, o libertava. Ao trabalhar com câmeras de grande formato e processos analógicos, ele alcançava uma densidade visual rara, onde cada gradação importa, e cada sombra tem peso.

A experimentação também foi uma constante em sua produção. Nos trabalhos de laboratório, por vezes deixava a câmera de lado para desenhar com nanquim sobre papel celofane, criando imagens únicas — um gesto que reafirma sua inquietação diante dos limites do meio e sua convicção na fotografia como linguagem visual expandida.

Foi também um pensador da imagem. Autor de dois livros fundamentais para a reflexão fotográfica no Brasil — O Relógio de Ver (2000) e IMAGO (2010) —, articulou com precisão o fazer e o pensar, a imagem e a palavra. Em ambos, revelou-se alguém profundamente comprometido com os sentidos da fotografia e com a forma como ela inscreve o mundo.

Em 2011, o FestFoto POA organizou uma retrospectiva abrangente de sua obra no Santander Cultural. Além da exposição, foi publicado o livro A Fotografia de Luiz Carlos Felizardo, reunindo décadas de trabalho, experimentações artesanais com negativos feitos à mão e impressões em preto e branco de alto rigor. A curadoria e a seleção das imagens ficaram a cargo da historiadora da arte Paula Ramos. E, como lembram os coordenadores do festival, Carlos Carvalho e Sinara Sandri:
— Ali eu tive a real dimensão de quem era o Felizardo — não só um grande fotógrafo, mas um mestre do tom de cinza. Ele dominava plenamente os tons e exigia que a impressora traduzisse com precisão o original dele. Fazia tudo: a cópia, o escaneamento, o controle técnico. Era um printer no sentido mais elevado da palavra — afirma Carlos Carvalho.
Felizardo talvez tenha sido o último brasileiro com essa expertise plena, esse domínio artesanal de toda a linha de produção de uma imagem em negativo. Uma coisa é ser laboratorista; outra é ser printer. E ele era um mestre nisso.
CARLOS CARVALHO
Coordenador do FestFotoPoa de 2011.

Marco Antônio Filho, gestor do acervo de Felizardo desde setembro de 2022, fez a curadoria de uma retrospectiva da sua obra quando foi homenageado no Prêmio Açorianos. Na época, ele encerrou o texto da curadoria da sua obra da seguinte forma:
Felizardo parece ter encontrado na fotografia sua própria forma de jogar com formas, volumes, linhas, texturas, cores, luzes e sombras. Pode não ter a mão, mas certamente tem o olho de um desenhista.
MARCO ANTONIO FILHO
Luiz Carlos Felizardo faleceu nesta quarta-feira (11), deixando uma ausência profunda na fotografia brasileira. Mas seu legado permanece: imagens silenciosas, densas, refinadas. A fotografia, em suas mãos, tornou-se um exercício de precisão e sensibilidade. E os tons de cinza, sua verdadeira paleta.

Num tempo marcado pela velocidade e pelo excesso de imagens, sua obra é um gesto de resistência. Uma lembrança de que ver — com profundidade, atenção e afeto — ainda é possível.
