
Um casal de gaúchos foi do Brasil ao Chile em nada mais nada menos que um Fusca azul — ou escarabajo (besouro) azul, como chamavam carinhosamente os falantes de espanhol pelo caminho. O carro ano 1977 levou a química Fernanda Silva Medeiros, 40 anos, e o operador petroquímico Cláudio da Silva Fragoso, 51, por um trajeto de cerca de 6,2 mil quilômetros, entre ida e volta.
A aventura, que durou 16 dias, completou 10 anos neste mês e tornou-se a primeira grande viagem do casal.
— Fora o roteiro, as paisagens impressionantes que vimos, a comida e a mudança de geografia, o que conhecemos de pessoas legais na estrada e que vivem da estrada, desse caminho, foi o mais legal. Conhecemos pessoas de várias realidades: caminhoneiro, viajante de moto, de motorhome, famílias, ciclistas, cara que anda a pé e as pessoas que vivem nessa estrada — resume Cláudio.
Essa é mais uma história da série de reportagens Tem Gaúcho na Estrada (confira as outras abaixo), que traz relatos de gaúchos que decidiram percorrer longas distâncias sobre rodas.
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Tem Gaúcho na Estrada
Era hora de tirar o sonho do papel

Nos anos 1990, Cláudio tinha um conhecido que lhe contou sobre as viagens que fazia, mostrou fotos dos lugares visitados e, pouco a pouco, inspirou a mente do rapaz. À época, Cláudio combinou com um amigo que um dia fariam uma viagem de moto ao Chile.
Os planos e prioridades mudaram com o passar dos anos, mas o desejo de tirar do papel aquele sonho permaneceu vivo em Cláudio.
Quando contou sobre o sonho para Fernanda, ela topou participar — só tinha um requisito: não podia ser de moto, já que os dois ainda não estavam acostumados sequer a trajetos mais simples sobre duas rodas. A solução parecia estar na ponta da língua: era hora de colocar o Fusca para cruzar as fronteiras.
Ter carros antigos era um costume familiar para Cláudio, que diz ter adquirido o Fusca como um hobby em 2008. Por meio de blogs, ele foi conheceu viajantes que faziam percursos com o carro pelo Brasil e pelo mundo. Spoiler: o Fusca está até hoje com o casal.
Segundo o viajante, a escolha do destino foi tanto inspirada pela história de juventude quanto pela questão "meio mítica" de ir de um oceano a outro — do Atlântico, que banha o Brasil, ao Pacífico, que costeia o Chile.
A organização para a jornada começou cerca de dois anos antes. O Fusca era usado no dia a dia, mas exigia manutenção. Também foram compradas peças extras. Financeiramente, o casal previu gastos com combustível, hospedagem e alimentação — a opção foi por ficar em hotéis e fazer refeições em restaurantes e lojas de postos de gasolina. O preparo incluiu, ainda, outro item: a aquisição de um aparelho de GPS.
A rota (inesperada) do GPS por um deserto
Sem Google Maps, Waze ou qualquer outro aplicativo de localização em smartphone — tecnologia que ainda engatinhava em 2015 —, foi com o dispositivo de GPS que o casal se guiou pelo caminho. E o aparelhinho rendeu história, hoje lembrada aos risos:
— Saindo de Córdoba (na Argentina), pegamos o caminho que o GPS indicava. E aí atravessamos um conjunto de montanhas imenso, que nem imaginávamos, e fomos descobrir só depois, quando conseguimos internet, que era uma das maiores cordilheiras da Argentina — conta Fernanda.
Aquele seria o caminho mais curto, como lembram. Na sequência, a rota levou o casal por uma espécie de "deserto", sem ter onde abastecer nem onde comer.
— Começou a dar fome. Tínhamos umas bolachas. Comemos aquilo e secou a nossa boca (risos). Foi horrível. Não ficamos tão tensos, tão nervosos, porque a estrada era boa e tinha um certo movimento — completa Cláudio.
Dias depois, quando voltavam ao Brasil, o casal descobriu que havia uma rodovia expressa que facilitou o retorno.
Fusca fez sucesso entre os hermanos
Principalmente durante a travessia pela Argentina, Fernanda se impressionou com o sucesso que o Fusca fez:
— As crianças abaixavam os vidros nos carros, pediam para os pais emparelharem carros conosco para ficarem olhando, pediam para tirar foto.
A Argentina nunca teve fabricação própria de Fusca. De acordo com o grupo Volkswagen, todas as unidades que circularam pelo país foram importadas.
Fusca é raro na Argentina?
- As primeiras unidades chegaram nos anos 1950, vindas da Alemanha
- Nos anos 1960, ainda conforme a companhia, o Fusca era um "carro raro e exótico na Argentina"
- Entre 1979 e 1982, foram vendidas cerca de oito mil unidades. Naqueles anos, uma versão brasileira do Fusca estava sendo importada pelo país
- Ainda conforme o grupo Volkswagen, apesar do apelo nostálgico, o Fusca "nunca atingiu grandes volumes" na Argentina, já que o preço e o desempenho modesto o deixavam atrás de carros compactos nacionais, como o Fiat 600 e o Renault 4
- Em 2004, a Volkswagen Argentina importou 50 unidades da série comemorativa Última Edición, fabricada no México
- O grupo destaca ainda que, embora o Fusca não tenha se tornado um carro popular na Argentina, conquistou a simpatia dos hermanos, com clubes de entusiastas, brincadeiras de crianças e encontros comemorativos
Probleminha técnico

Uma nevasca "fora de época" na região de Mendoza, na Argentina, também ficou gravada na memória dos dois. A situação fez com que tivessem de esperar a neve reduzir e a estrada ser aberta.
— Cruzamos a Cordilheira logo após uma nevasca. Então, as máquinas abriram a estrada para passar o trânsito e se passava num "túnel de gelo". Era incrível aquilo — descreve Cláudio.
Em relação ao carro, o casal brinca que tinha "todos os receios" antes de sair viajando. As preocupações envolviam documentações, leis de trânsito e, principalmente, acidentes. Um medo que não tinham tão presente era de que o carro estragasse, uma vez que estava com a manutenção feita.
Apesar disso, no segundo dia da viagem, o veículo deu um susto. Fernanda explica que, no trajeto de Uruguaiana a Resistência, na Argentina, passaram por uma estrada repleta de vãos. Ela descreve o resultado da aventura:
— Íamos o tempo todo tropicando no Fusca. Lá pelas tantas, o Fusca simplesmente parou: parou o rádio, parou de funcionar, parou tudo, isso no segundo dia. Aí eu disse: "Meu Deus, onde é que eu me meti?". Mas confio muito nele (Cláudio), porque é um hobby, mas ele é um excelente mecânico. Ele descobriu que estava dando um mau contato na chave de ignição, que soltou por causa da trepidação da estrada.
No trajeto de volta ao Brasil, um dos destaques positivos para Fernanda e Cláudio foi terem optado por passar uma noite em um lugarejo chamado Los Penitentes, na Cordilheira dos Andes.
— Dormimos na casa do responsável pelo lugarejo, pelo parque, e ele era instrutor de escalada no Aconcágua (montanha na Argentina). Então aquilo foi muito, muito legal — ressalta Fernanda.
As viagens de moto

Se, no princípio, Fernanda preferia não viajar de moto, hoje a opinião já é outra. Ela considera a experiência, inclusive, "praticamente uma meditação".
Em 2018, a banda Foo Fighters, da qual é fã, fez turnê pela América Latina. A viajante convenceu Cláudio a ir a todos os shows com a proposta de que a viagem fosse de moto. Os dois passaram por Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba, além de Porto Alegre. E, de carro, foram até a apresentação em Buenos Aires, na Argentina.
A partir dali, surgiram outras oportunidades. Em 2022, o casal voltou à Argentina. E, em 2024, foi até o extremo sul argentino, em Ushuaia. Anos antes, em um carro Peugeot, passearam pela costa uruguaia.
Para 2026 e 2027, os planos incluem ir a Goiânia, em uma corrida de MotoGP, assim como viajar um pouco mais longe no Chile: até o deserto do Atacama.













