
Vivemos uma época em que o silêncio virou incômodo, e o tédio, quase proibido. Entre vídeos curtos, notificações incessantes e uma rotina que não dá trégua, o tempo livre perdeu espaço, principalmente na infância.
Para especialistas, porém, é justamente nesse vazio que mora um dos segredos para o desenvolvimento: o tédio como ferramenta de criatividade, autonomia e equilíbrio emocional.
A psicóloga Mônica Rezende, do Grupo Mantevida, explica que o ócio não é sinônimo de preguiça ou desinteresse, mas um estado mental necessário.
— O tédio na infância é uma experiência subjetiva, uma sensação de falta de estímulo que acontece quando a criança não encontra algo imediato para fazer. Do ponto de vista científico, ele não é apenas ausência de atividade, mas um estado mental que pode abrir espaço para a imaginação, a autorreflexão e a criatividade — afirma.
Segundo ela, é justamente nesse vazio que a criança aprende a criar.
— O tédio funciona como um gatilho para que a criança crie, explore e invente. É nesse espaço que ela aprende a lidar com a frustração, desenvolve autonomia e descobre novas formas de se relacionar com o mundo — explica.
Sem esses momentos de pausa, a infância pode se tornar dependente de estímulos externos constantes, o que impacta não apenas o presente, mas também o futuro.
— Quando a criança cresce sem momentos de tédio, ela pode se tornar mais dependente de estímulos, menos criativa e com mais dificuldade para lidar com situações de espera ou silêncio. Isso pode trazer impactos para a saúde emocional e para a construção da autonomia — diz Mônica.
Excesso de estímulos

A era digital multiplicou os estímulos a que as crianças são expostas e reduziu o tempo de atenção. Do YouTube aos vídeos de poucos segundos no TikTok, a lógica é manter o interesse a qualquer custo.
Mas, segundo a pedagoga e doutora em psicologia evolutiva, Bettina Steren dos Santos, o resultado é preocupante. Ela observa que o uso prolongado das telas interfere diretamente na aprendizagem e nas relações sociais.
— Pesquisas no mundo todo já mostram como o uso intenso das redes digitais afeta a capacidade de aprendizagem, o relacionamento com as pessoas e a autonomia das crianças. São elementos fundamentais para o desenvolvimento humano que acabam não se formando adequadamente — analisa Bettina, que também é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
A especialista lembra que a recente proibição do uso de celulares em escolas foi necessária, mas insuficiente.
— Foi uma medida importante, mas não resolve sozinha. Não adianta a escola proibir se, em casa, os pais estão no celular o tempo inteiro. A mudança precisa envolver escola, família e professores, que devem pensar juntos em estratégias para que as crianças tenham mais oportunidades de brincar e interagir no pátio e menos tempo de tela — avalia Bettina.
Embora ainda não existam dados definitivos sobre os efeitos de longo prazo, Bettina afirma que já há evidências "preocupantes" sobre os impactos físicos e emocionais da exposição precoce às telas.
— O uso excessivo causa problemas de visão, dores de cabeça, postura e até enxaquecas. No campo emocional, vemos aumento da ansiedade, estresse, isolamento e comparação constante com padrões irreais. As redes mostram uma vida perfeita que não existe, e isso afeta profundamente a autoestima dos adolescentes — explica.
Ela acrescenta que o consumo acelerado de informações também compromete a capacidade de transformar dados em conhecimento.
— A gente lê, vê vídeos o tempo todo, mas quando tenta lembrar o que realmente aprendeu, percebe que ficou pouco. A informação não se transforma em sabedoria, e isso tem impacto direto na memória e na concentração — observa.
O papel do ócio na autonomia infantil

O brincar livre, sem instruções ou resultados esperados, é o terreno fértil onde o tédio se transforma em criatividade. Bettina cita o exemplo de uma experiência observada no Japão, em que crianças pequenas recebem apenas pedaços de madeira e são convidadas a construir o que quiserem.
— Elas começam a montar pontes, casas, estruturas de todos os tipos. Sem manual, apenas com a imaginação. Esse tipo de experiência estimula o pensamento crítico, a criatividade e a interação — explica.
Para ela, cabe aos adultos decidir se é mais fácil entregar o celular para a criança ficar quieta ou oferecer papel, tesoura, tintas e espaço para criar.
A psicóloga Mônica complementa que a ausência de tempo livre também afeta a saúde mental.
— A longo prazo, isso pode refletir em níveis maiores de ansiedade e em dificuldades emocionais. O excesso de estímulos pode sobrecarregar o cérebro em desenvolvimento, causando dificuldade de concentração, impaciência e necessidade constante de novidades — destaca.
Exemplo dos adultos e a rotina produtivista

A dificuldade dos pais em lidar com o próprio ócio se reflete diretamente nas crianças. Bettina observa que vivemos em uma sociedade que valoriza a produtividade desde cedo, o que tem levado famílias a preencherem cada minuto da rotina infantil com tarefas e cursos.
— Os pais estão sempre procurando o que a criança deve fazer, como se ela precisasse estar ocupada o tempo todo. As crianças de classe média e alta, por exemplo, passam o dia inteiro entre atividades. As de outras classes, muitas vezes, ficam restritas ao ambiente escolar. Em ambos os casos, falta o brincar livre — aponta.
Ela ressalta que conversar com as crianças sobre limites e explicar o porquê das decisões é essencial.
— As pessoas pensam que as crianças não entendem, mas elas entendem tudo. É preciso conversar e explicar o motivo de não poder usar a tela ou de precisar brincar fora de casa. Elas compreendem muito mais do que imaginamos — reforça.
Refúgio para o brincar livre
Logo na chegada ao Villa Bela — Espaço do Brincar, em Novo Hamburgo, é impossível não se deixar envolver pela atmosfera leve e vibrante do lugar.
Em meio a um amplo jardim, crianças correm descalças, exploram casinhas de madeira e se reúnem em volta de uma grande amoreira, onde colhem as frutas direto do pé.
O som das risadas se mistura ao aroma de terra molhada, criando um cenário que traduz com delicadeza o propósito do espaço: resgatar o brincar livre e a conexão com a natureza.
Criado por Ana Paula dos Santos, o Villa Bela nasceu de uma inquietação pessoal.
— A ideia surgiu, primeiramente, como uma demanda minha como mãe —conta.
Quando a filha mais velha, Isabela, tinha apenas um ano e meio, Ana Paula sentiu falta de um local onde a criança pudesse explorar com mais liberdade, algo que não encontrava nas escolas tradicionais.
— Eu queria (que ela tivesse) mais momentos na rua, ao ar livre, com água, terra, natureza. Pesquisei bastante e percebi que havia espaços assim em outras regiões do país, mas quase nada no Rio Grande do Sul. Então, resolvi criar o meu próprio espaço do brincar — relembra.
Inspirado na filosofia Montessori, o Villa Bela tem como base o respeito à individualidade e à autonomia da criança.
A educadora e médica italiana Maria Montessori (1870–1952) defendia que a educação infantil deve partir da liberdade e da curiosidade natural da criança, promovendo a autoeducação em um ambiente preparado para a exploração.

No espaço, isso se traduz em móveis adaptados à altura das crianças, brinquedos acessíveis e um ambiente que estimula escolhas, movimento e interação.
— A autonomia não é só para o adulto. A criança também precisa ter autonomia para decidir onde quer sentar, o que quer explorar, se quer pintar com pincel ou com os dedos. O importante é que ela esteja envolvida e feliz com o processo — explica Ana Paula.
No cotidiano do Villa Bela, o equilíbrio entre liberdade e acolhimento é o eixo da proposta pedagógica. As atividades seguem uma rotina flexível, com momentos de brincadeira livre e outros mais dirigidos, sempre respeitando o ritmo e o interesse de cada criança.
— Temos uma rotina mínima porque a criança gosta da previsibilidade, mas nada engessado. O brincar livre ocupa grande parte do tempo, e as atividades dirigidas são sempre pensadas para desenvolver coordenação motora, habilidades sensoriais e emocionais — detalha a idealizadora, que hoje cursa uma pós-graduação em neurociência na Educação Infantil.
O papel dos educadores
Os educadores — ou “profes”, como as crianças gostam de chamar — atuam como observadores atentos. Eles intervêm apenas quando percebem que o grupo precisa de incentivo ou direcionamento.
— O primeiro passo é sempre observar. Às vezes, a criança está mais criativa e conduz o próprio brincar. Em outros dias, mais quieta, e aí o adulto entra para propor algo novo. O educador precisa ter sensibilidade para perceber esse momento — emenda Ana Paula.
O contato com a natureza é uma das marcas mais fortes do espaço. Descalços, os pequenos exploram areia, plantas e água, elementos sempre disponíveis.
— Eles já entram e logo tiram os sapatos. É automático. Aqui, a natureza está à disposição o tempo todo, e isso transforma o comportamento deles. Quando passam muitos dias de chuva, sem poder sair, ficam mais agitados e irritados. O ar livre é essencial para o equilíbrio emocional — relata a idealizadora.

A faixa etária atendida vai de um a seis anos, com possibilidade de participação de crianças mais velhas no contraturno escolar.
O espaço não é uma escola formal — não segue as diretrizes do Ministério da Educação (MEC) —, mas funciona como ambiente de desenvolvimento infantil. Muitas famílias buscam o Villa Bela justamente por essa característica: flexibilidade de horários e foco no brincar.
— Ainda existe um certo preconceito com o termo "espaço de brincar", como se não fosse algo sério. Mas é muito pelo contrário. Aqui, o brincar tem propósito, tem intencionalidade. É por meio dele que a criança se desenvolve em todos os aspectos — reforça Ana Paula.
Segundo a idealizadora do local, as transformações das crianças ao longo do tempo são visíveis.
— No início, algumas chegam mais tímidas ou rígidas, às vezes choram mais. Mas com o tempo, vão ficando leves, tranquilas, aprendem a lidar com os colegas e com as próprias emoções. É lindo de ver — diz.
Conforme Ana Paula, essa vivência contribui até para a adaptação escolar.
— O Villa Bela funciona como uma transição natural. A criança aprende a conviver em grupo, a seguir pequenas rotinas e a se afastar dos pais por algumas horas, tudo de forma saudável e prazerosa — exemplifica.
Para manter a proposta viva, a equipe — hoje composta por outros três profissionais — passa por formações constantes.
— Tem muito profissional bom (no mercado de trabalho), mas que vem de um modelo mais tradicional e fica um pouco perdido em um espaço livre. Aqui, o desafio é justamente desacelerar, observar e confiar no tempo da criança — comenta Ana Paula.
Dicas dos especialistas para os pais
- Resista à pressa de preencher o tempo livre dos filhos
- Evite oferecer telas como solução imediata
- Prepare o ambiente
- Valorize o brincar livre
- Mostre que o tédio não é castigo
- Inclua pausas na rotina
- Incentive brincadeiras ao ar livre
- Acompanhe as brincadeiras sem interferir
- Celebre e incentive a criatividade dos filhos


