
O ar gelado de uma quinta-feira à noite, com temperatura marcando 11 °C, era um mero detalhe. Com celulares em punho, um grupo de 10 pessoas – jovens, em sua maioria – registrava cada movimento e aparição. Prevalecia a euforia entre conversas animadas. Era como se fosse uma turma de fãs na porta de um hotel, aguardando o aceno do ídolo.
Mas o cenário era a garagem da Viação Teresópolis Cavalhada (VTC), no bairro Cavalhada, Zona Sul de Porto Alegre. O grupo era formado por busólogos, que estavam ali a convite da Associação dos Transportadores de Passageiros de Porto Alegre (ATP).
Ali, prevalecia uma familiaridade com os prefixos dos ônibus da cidade — tem quem ame o 2231, por exemplo, que faz rotas pelos bairros Restinga, Campo Novo e Cohab. Cada especificidade virava pauta: carroceria, chassi, motor, pintura, rota etc. Assim como cada pedaço dos veículos era filmado e fotografado com esmero.
— Prometi fotografar este painel para meu amigo — disse um jovem empunhando o celular dentro de um ônibus elétrico.
— Putz, o 2128 está na manutenção — lamentou outro.
— Não fala mal da minha linha, só eu posso falar mal dela — brincou um dos presentes.
Entre o rodoviário e o urbano
Há pessoas que pegam ônibus mecanicamente, todos os dias. Esperar, sinalizar, subir, sentar, levantar, descer. E acaba por aí. Entre os usuários, são comuns as frustrações com o serviço: lotação, falta de ar-condicionado, barulhos, lentidão, atrasos etc.
Porém, há quem veja poesia e beleza em cada veículo.
São os busólogos. O termo se refere a quem é aficionado por ônibus e dispõe de amplo conhecimento sobre o tema. Entre as habilidades, por exemplo, estão: diferenciar o barulho do motor de um veículo, discorrer sobre a carroceria ou o chassi, conhecer a história de uma linha, reconhecer motoristas, registrar e catalogar ônibus.
A busologia me fez criar vínculos com pessoas maravilhosas. Há gurizada de 14 anos até gente com 60 anos fazendo foto de ônibus.
GABRIELLE KARSBURG
Há busólogos dedicados aos ônibus rodoviários – com frequência, esses apaixonados circulam pelas rodoviárias. Mas também há quem se dedique aos veículos urbanos, como os que circulam pelas ruas dos bairros de Porto Alegre. É o caso daqueles presentes no encontro na garagem da VTC.
No grupo de visitantes da VTC, Gabrielle Karsburg era a única mulher presente. Ela recorda que a paixão por ônibus começou aos 4 anos, especificamente pela linha 165 – Cohab, um veículo articulado que chamava sua atenção na infância. Hoje, aos 31, seu favorito é o 2231 da VTC – um Torino Express 2014 com chassi O500 MA, que ela descreve como o mais “enfeitado” da empresa.

Ao longo dos anos, Gabrielle sonhou em ser motorista, mas atualmente seu objetivo é trabalhar na parte mecânica dos ônibus — tanto que estuda na área, em um curso da Escola Técnica Estadual Parobé. Entre seus três filhos, o caçula de 6 anos, Marcos Paulo (a quem chama carinhosamente de Marcopolo), parece seguir os passos da mãe e já demonstra interesse pela mesma paixão.
— Busólogo é uma pessoa que vê o ônibus como uma máquina que encanta. E também tem muita curiosidade como funciona o veículo e tudo que acontece dentro de uma empresa — explica Gabrielle. — A busologia me fez criar vínculos com pessoas maravilhosas. Há gurizada de 14 anos até gente com 60 anos fazendo foto de ônibus.
Rede social como aliada
Gabrielle conta que há grupos de busólogos no Facebook e no WhatsApp, além da plataforma Ônibus Brasil, que funciona como um acervo colaborativo de fotos de ônibus – nela, usuários compartilham imagens feitas durante avistamentos dos veículos.
Na plataforma, o estudante porto-alegrense Guilherme Bergman, de 19 anos, já acumula mais de 700 fotos publicadas – e garante que ainda tem muitas outras para postar.
Para produzir as imagens, ele costuma sair sozinho ou acompanhado de amigos para dar voltas, por exemplo, pela Zona Norte. Já fez passeios até Canoas, aproveitando o passe livre vigente na cidade, com o objetivo de conhecer os “carros” – como os busólogos chamam os ônibus – de lá.
Guilherme se aproximou da busologia em um momento difícil da vida. Durante esse período de tristeza, passou a refletir: já que andava tanto de ônibus, talvez pudesse enxergar esse serviço de outra maneira.
— Achei um grupo de pessoas que gostavam da mesma coisa que eu. Tanto que saía para dar volta com eles e esquecia aquela coisa ruim. Além de me ajudarem com conselhos e risadas, encontrei um lugar onde não era julgado — relata.
Além de seu acervo na plataforma Ônibus Brasil, Guilherme também mantém o perfil @gbr_bus no Instagram, onde publica as imagens que produz. Aliás, no mesmo encontro na garagem da VTC, havia outros busólogos que criam conteúdo para diferentes redes sociais.
Por ali, estava o trio do projeto Plantão do Trecho (@plantaodotrecho), dedicado à busologia no Estado: Antônio Mello dos Santos, Pedro Henrique Santos Nunes, mais conhecido como “Pierre”, ambos com 18 anos, e João Victor dos Santos Bortolozzo, de 17. Os três vivem em Porto Alegre e sonham em se tornar motoristas de ônibus.
Antônio também não descarta trabalhar na parte mecânica. Filho de motorista de ônibus, a paixão pelo veículo foi despertada ainda na infância, mas foi se dedicar à busologia a partir do ano passado.
— Uma coisa que gosto de dizer é que o médico tem uma equipe para cuidar de um paciente. E o motorista de ônibus não. No máximo, um cobrador para ajudá-lo em um carro com mais de 100 pessoas. É uma profissão muito bonita, ao meu ver — avalia Antônio.
Para Pierre, a busologia é mais do que um hobby:
— É algo que me define, que faz eu ser quem eu sou. É uma paixão que eu carrego desde criança.
Em seu tempo livre, Pierre costuma sair para tirar fotos com amigos. João também costuma fazer o mesmo:
— Marco quando o pessoal do nosso grupo pode. Por exemplo, vamos no Centro, onde há várias opções para tirarmos fotos. Aproveitamos o dia de passe livre para andar em tudo que é ônibus, fazer amizades com os motoristas e realizar novos registros.
Também estava presente na garagem da VTC o criador do perfil poa.buses (@poabuses). Aos 18 anos, o porto-alegrense Maicon Kraemer Maia acumula 16,8 mil seguidores e mais de 535 mil curtidas no TikTok com o projeto, que apresenta, em sua maioria, registros de ônibus da capital gaúcha.
— Quando faço o registro, é como se estivesse transmitindo o que gosto. Tem gente que sai na rua todo dia, passando calor ou frio, só para tirar foto de ônibus. Eu sou um desses, de vez em quando. Quando dá para sair, eu vou — destaca Maicon.
Entre os busólogos presentes na garagem, além do entusiasmo pelos ônibus, havia um anseio em comum: a compreensão. O desejo de que as pessoas entendam que aquele amor pelos veículos é tão legítimo quanto a paixão por futebol ou música – algo positivo em suas vidas e que os conecta a outros aficionados com interesses semelhantes.
— Não é porque eu gosto de ônibus que vou querer estar em um Restinga lotado às 7h. Não é assim que funciona. Tem gente que é apaixonada por moto, carro ou caminhão. Por que não por ônibus? — questiona o jovem.
Do outro lado

Como os busólogos buscam conhecimento sobre os veículos e rotina das empresas, é comum também estabelecerem vínculos com motoristas. No encontro na garagem da VTC, estava presente alguém que já esteve em ambos os lados da paixão.
Aos 35 anos, sendo 17 trabalhando no ramo, Luan Martins é motorista da Viação Alto Petrópolis (VAP). Ele mantém um canal do YouTube intitulado Conduzindo com Luan Martins e um perfil no Instagram (@luangalerinha), onde compartilha suas experiências busólogas.
A paixão de Luan vem de família: seu pai também era motorista de ônibus. Desde pequeno aprendeu a amar esse universo, o qual já tinha acesso desde cedo. Sempre que podia, ia a um veículo desligado e sentava no banco do motorista.
— Antes de ser motorista, quando podia estar em um terminal olhando um ônibus parado, lá eu estava. É a mesma paixão que a gurizada tem hoje. Só que hoje eu vivo isso — afirma.
Com seu conteúdo, Luan espera oferecer um contato mais próximo dos busólogos com seu meio – o mesmo contato que ele teve desde cedo. Consequentemente, sua ligação com os aficionados é bastante positiva.
Tanto que os busólogos vivem lhe pedindo “canjinha”, como o motorista descreve. Por exemplo, tirar foto de um ônibus novo que chegou à empresa. Ou simplesmente marcar com Luan para bater um papo e tirar dúvidas (e fotos).
Para Luan, hoje a relação dos motoristas com os busólogos é de maior receptividade. Antes, havia um certo receio por parte dos condutores, até por não saberem do que se tratava aquela paixão.
— Eu me enxergo muito nos busólogos. Tanto que hoje sou motorista de ônibus — conclui.