
Ao retornar de uma missa de domingo com a família, em Canoas, na Região Metropolitana, o então estudante do Ensino Fundamental Pedro Luís da Rosa Kaufmann jantou e foi se deitar. De olhos abertos na escuridão completa, um pensamento resistia ao sono: "Será que eu deveria virar padre quando crescer?". Ao despertar, no final da manhã seguinte, dirigiu-se à cozinha onde a mãe já lidava com as panelas enquanto assistia televisão. Foi tomado por um arrepio quando distinguiu o tema da entrevista em curso no Jornal do Almoço, da RBS TV: qual o caminho para um jovem tornar-se sacerdote católico.
Ainda criança, entendeu a coincidência como uma resposta divina à sua inquietação noturna. No próximo dia 27, uma década e meia depois de ouvir o chamado, Kaufmann será ordenado padre — o único a se formar neste ano em toda a arquidiocese de Porto Alegre, que congrega 29 municípios e pouco mais de 2 milhões de católicos.
A solidão de Pedro no altar ilustra uma tendência recente de recuo na confirmação de vocações religiosas no maior centro urbano do Estado. A média de novos religiosos na arquidiocese diminuiu de cinco ao ano, entre 2004 e 2014, para 2,8 ao ano no período entre 2015 e 2025.
Cada diocese tem a prerrogativa de formar de novos padres (os chamados diocesanos), mas eles também podem ser consagrados pelas diferentes ordens existentes no âmbito da igreja (os chamados religiosos). Ainda assim, a capacidade da principal região do Estado de produzir líderes espirituais serve como termômetro do crescente desinteresse pela batina no Rio Grande do Sul — um dos mais tradicionais celeiros católicos do país.
A cifra atual é o segundo menor número anual de formaturas das últimas duas décadas. Em 2021, durante a pandemia, ninguém foi consagrado, e em 2015 também houve apenas uma confirmação.
O responsável por garantir que esse número não voltasse a zero neste ano é oriundo de uma família com vínculos profundos com a igreja, mas que passou pela infância e pela adolescência como qualquer outro guri. Durante muito tempo, sonhava em virar jogador de futebol, casar e ter filhos. Chegou, inclusive, a namorar. Por isso, parte dos amigos duvidava da firmeza de sua vocação.
— Chegaram a apostar entre eles se eu viraria padre mesmo ou não. Não tenho certeza, mas acho que chegaram a apostar dinheiro — diverte-se o hoje diácono (espécie de auxiliar religioso) Kaufmann, aos 27 anos.
Tudo indica que será um sacerdote com a cara do século 21: adora jogar futebol de salão (chegou a ser cogitado para atuar profissionalmente como goleiro), é ativo nas redes sociais, atualizando com frequência seu Instagram com assuntos divinos e esportivos (também é fiel seguidor do Inter), e não abre mão de passatempos modernos como videogame e séries e filmes por streaming.
— Estou sem videogame no momento, mas quero comprar um depois de virar padre para, pelo menos na folga de segunda-feira, jogar um Fifa, um Call of Duty — garante o diácono, em referência a um simulador de futebol e a um jogo de guerra.
O gosto pela temática bélica se estende ainda aos filmes, mas, em relação às séries, adora as comédias. Outro hobby é a fotografia. Chegou a fazer um curso técnico para aprimorar a habilidade com a câmera, e cogita fazer dela um de seus instrumentos de pregação quando finalmente for ordenado.
— Como tenho essa paixão por design, por fotografia, acho que poderei contribuir com a comunicação da igreja no âmbito digital — complementa Kaufmann.
O futuro presbítero afirma encarar a singularidade de sua ordenação com "humildade". Ele entrou no seminário com outros oito colegas, que foram desistindo do percurso ao longo dos meses. Um deles se afastou durante um ano, mas resolveu retornar ao seio do catolicismo. Por isso, deverá se diplomar apenas no ano que vem.
Durante os últimos meses de preparação, Kaufmann atuou como diácono nas paróquias Santa Luzia e Santa Cruz, na Capital. Nessa função, auxiliou o padre Luiz Barros, de 39 anos e uma década de sacerdócio.
— Mesmo que seja apenas um, é o que Deus nos deu. O Pedro é muito dedicado, capaz, calmo, um bom companheiro de caminhada. Também é importante porque traz ideias novas para a Igreja, por estar atento ao mundo juvenil. Os jovens gostam muito dele — afirma Barros.
A única cerimônia de ordenação de 2025, quando o mais novo padre da arquidiocese assumirá para si o lema "Senhor, é vossa face que eu procuro", ocorrerá às 20h de sexta (27) na paróquia Nossa Senhora das Graças, em Canoas. Na sequência, Kaufmann assumirá suas funções em Guaíba, na Grande Porto Alegre.
Amor pela igreja tem origem familiar
A devoção de Pedro Kaufmann pela Igreja Católica é, antes do que um milagre, consequência de uma história familiar vinculada à religião. Seu pai, Edson Kaufmann, sempre foi muito ligado à paróquia Imaculada Conceição, em Canoas. Durante um bom tempo, como o padre não gostava de dirigir, conduzia o religioso a lugares mais distantes. Hoje, trabalha em uma escola ligada à igreja, enquanto a mãe, Rosemere, atua como secretária na paróquia Nossa Senhora das Graças.
— Primeiro eu achava chato ir à missa. Era piazinho. Mas quando tinha 10, 11 anos, já passei a entender que era uma coisa boa. Aí, eu é que pedia para o pai e a mãe me levarem — recorda o diácono, entre risos.
Nessa paróquia canoense, o futuro sacerdote conheceu um padre fundamental para consolidar sua vocação. Além de receber os fiéis na porta da igreja, Flávio Canísio Steffen procurava fazer parte do dia a dia das famílias. Por vezes, aparecia na casa dos Kaufmann para almoçar e bater papo. Nessas conversas, também falava de temas mundanos, como futebol — chegou a ser chamado para jogar nas categorias de base do Grêmio. O pequeno Pedro ouvia a conversa com ar de quem havia recebido uma revelação divina:
— Eu percebi que o padre não é aquele cara que reza a missa e vai pra dentro de casa, de onde só sai no outro final de semana para rezar missa de novo. Ele tem uma vida, gosta de tomar uma cervejinha com moderação, conta piada. Me dei conta de que era uma pessoa como qualquer outra, só que exerce a função de padre. Aí eu comecei a pensar que também poderia ser padre.
"Sinal de alerta está sendo aceso", diz bispo auxiliar de Porto Alegre
A Igreja Católica da Capital afirma que o baixo número anual de ordenações começa a alertar a hierarquia eclesiástica metropolitana. Até o momento, há uma pequena folga na comparação entre pastores espirituais e o rebanho de fiéis nos 29 municípios da região, já que existem 212 padres — contando somente os diocesanos, ou seja, formados pela própria estrutura da arquidiocese, sem contar aqueles habilitados em ordens religiosas — para administrarem 161 paróquias. O problema é que cada paróquia pode ter várias comunidades com capelas próprias, o que exige um número maior de religiosos para realizar cerimônias religiosas de forma descentralizada e periódica.
As famílias diminuíram, e a opção pelo matrimônio também agravou a crise vocacional
DOM JUAREZ DESTRO
Bispo auxiliar de Porto Alegre
A cidade de Camaquã, por exemplo, tem uma paróquia e três padres — mas eles precisam dar conta de atender a quase três dezenas de comunidades, segundo o bispo auxiliar de Porto Alegre, dom Juarez Albino Destro, referência para as vocações na arquidiocese.
— O sinal de alerta está sendo aceso. Antigamente, tínhamos muitos seminaristas. Era motivo de orgulho ter uma pessoa na família que fosse padre, ainda mais aqui no Sul. As famílias diminuíram, a opção pelo matrimônio também agravou a crise vocacional, além do fato de as famílias serem muito menores. Tanto que o papa Francisco tentou estimular que as pessoas tivessem mais filhos — analisa dom Juarez.
O cenário atual resulta em uma conta que, ao cabo de alguns anos, não vai fechar. Enquanto a média de novos padres ordenados ao ano ficou em 2,8 no período entre 2015 e 2025 na arquidiocese, nos últimos 10 anos foi verificada uma média de 3,5 falecimentos anuais de idosos — ou seja, a igreja metropolitana já enfrenta dificuldades para repor as vagas abertas.
Não há uma contabilidade unificada, na arquidiocese da Capital, de quantos religiosos são consagrados em outras dioceses ou pelas variadas ordens católicas. Mas o fato de a região não conseguir formar líderes espirituais em ritmo suficiente para manter ou ampliar o atendimento nas paróquias é visto como um desafio a ser vencido.
Parte da demanda é atendida por diáconos leigos, casados, capazes de auxiliar os padres em determinadas funções. Mas o futuro da Igreja Católica na maior região do Estado depende, cada vez mais, da vocação de jovens como Pedro Luís da Rosa Kaufmann.
Dom Juarez também sustenta que há um trabalho permanente de estímulo às novas vocações.
— Nos vicariatos, temos serviços de animação vocacional, que são uma semente que vamos jogando e cultivando. Depois, mesmo que a pessoa não seja sacerdote, pode virar catequista, entre outras funções — complementa o bispo auxiliar.
Como os números indicam que os católicos ainda são uma porção significativa dos brasileiros (perto de 60%), dom Juarez não vê razão para "preocupação extrema":
— Temos de continuar trabalhando com animação, envolvendo o povo de Deus nessa caminhada.
Para o próximo ano, já se vislumbra um pequeno milagre da multiplicação dos vocacionados: estão previstas cinco ordenações. Caso se confirme, será o patamar mais elevado dos últimos oito anos.
O caminho ao sacerdócio
As etapas para virar padre diocesano na região da Capital:
Animação vocacional
É uma espécie de acompanhamento vocacional anterior à entrada no seminário (também conhecido como kairós). Pelo menos uma vez por mês, o jovem participa de encontros para dialogar, expôr as razões pelas quais deseja ir para o seminário e para apresentação dos familiares.
Seminário menor
Se o candidato ainda estiver cursando o Ensino Médio, vai inicialmente para o chamado seminário menor, onde permanece para concluir essa etapa dos estudos formais. Há um local desse tipo em Esteio, por exemplo.
Seminário propedêutico
Quem já tem o Ensino Médio vai para uma etapa de um ano em seminário chamado propedêutico, como o que há em Gravataí, destinado a mais um período de esclarecimento sobre a vocação e preparação para as etapas seguintes.
Seminário maior
O seminarista faz um curso superior de Filosofia, com três anos de duração, e outro de Teologia, com quatro anos de duração — somando pelo menos sete anos de formação nesta etapa. Há um seminário maior em Viamão.
Síntese
Depois do curso de Teologia, participa de um ano de ações de "síntese vocacional", durante o qual é inserido em uma unidade da arquidiocese para colocar a teoria aprendida em prática. Forma-se diácono, podendo auxiliar os sacerdotes, e, ao fim de mais esse período de um ano, é ordenado padre em uma cerimônia.