
Situada na parte central do território gaúcho, a Quarta Colônia oferece paisagens deslumbrantes, com muito verde no horizonte, religiosidade – vista nas igrejas, capitéis e imagens sacras –, além de gastronomia e do culto às tradições dos antepassados.
Formada por nove cidades – Agudo, Dona Francisca, Faxinal do Soturno, Ivorá, Nova Palma, Pinhal Grande, Restinga Seca, São João do Polêsine e Silveira Martins –, a Quarta Colônia recebeu imigrantes italianos de regiões como Vêneto e Friuli. A colonização deixou marcas na arquitetura, nos costumes e na história do local.
Aventurar-se por esses municípios possibilita ao visitante conhecer pessoas com trajetórias de vida singulares. Trata-se de personagens como o sineiro mais antigo de Faxinal do Soturno, a moradora da casa de pedra de Silveira Martins e as nonas cozinheiras de massa de São João do Polêsine. A alma da Quarta Colônia passa por essas histórias.
O sineiro mais antigo de Faxinal do Soturno
Os três sinos da Igreja Matriz São Roque, situada na Praça Vicente Pallotti, no centro de Faxinal do Soturno, contam com a experiência e a perseverança de Júlio Gilberto Brondani, 72 anos, para o som das badaladas reverberar pelos ares. Há 50 anos, o sineiro executa a tarefa na cidade de cerca de 6,7 mil habitantes.
— Tinha uns senhores que tocavam durante as missas e admirávamos muito. Então, resolvi aprender e decidi ser sineiro — conta Brondani, que demorou seis meses para dominar a técnica.
Em 21 de abril, o campaneiro precisou tocar o sino para anunciar um momento de tristeza – a morte do Papa Francisco. Porém, poucos dias depois, em 8 de maio, os sinos ressoaram com intensidade na torre da igreja. Era o anúncio que o Vaticano escolhera o novo Pontífice – Leão XIV.
O pessoal chega aqui, experimenta duas ou três vezes e não quer mais. Porque machuca as mãos, é pesado e cansa.
JÚLIO GILBERTO BRONDANI
Sineiro
A construção da atual Igreja Matriz começou em 1936 e a inauguração ocorreu três anos depois. Entretanto, os sinos chegaram antes, em 1915. Primeiro foram instalados em uma capela e mais tarde no local atual.
Os sinos contam com uma série de detalhes e ostentam pequenas imagens em alto-relevo de São Roque – padroeiro de Faxinal do Soturno –, da Imaculada, do Crucificado, da Santíssima Família, de São Pio X e de Santa Teresinha do Menino Jesus.
Em tempos antigos, a população de Faxinal do Soturno ficava sabendo das notícias do mundo por meio do sino. Quando badalava, os moradores corriam para saber do que se tratava. Era como ocorria a comunicação na localidade.
Seu Júlio procura transmitir o legado para as próximas gerações e ensina o ofício para os mais jovens. Porém, os garotos não demonstram interesse em dar sequência a essa tradição. Certa vez, segundo relata, 30 aspirantes ao posto passaram por aulas. Resultado: 29 desistiram em decorrência dos machucados e lesões nas mãos.
— Quando eu aprendi a tocar sinos sofri muito e machuquei bastante as mãos. Mas, graças a Deus, consegui.
Em seguida, o sineiro narra o que afugenta possíveis candidatos em manter a difícil tarefa:
— O pessoal chega aqui, experimenta duas ou três vezes e não quer mais. Porque machuca as mãos, é pesado e cansa.
O sineiro explica quais são as maiores dificuldades ao lidar diariamente com sinos de 200, 300 e 500 quilos. Os braços acabam sendo as partes do corpo mais exigidas durante o ato.
— O difícil é achar o ponto dele. Porque ele precisa ficar de pé, de boca para cima, só no equilíbrio. São 500 quilos, tem que ser no ponto exato. Se deixar passar, três homens não seguram ele.
Conforme o sineiro, a execução contempla três tipos de toques:
- festivo: toca-se os três sinos em casamentos, missas e outras celebrações
- solo: apenas um sino toca quando morre uma pessoa
- dois toques: dois sinos tocam quando o corpo do morto é conduzido para o cemitério
— Em Faxinal, até hoje quando morre uma pessoa, a primeira coisa é o sino. Quer tocar o sino, fala com o padre — compartilha.
Nas ocasiões de falecimento de pessoas da cidade, o protocolo orienta os sinos serem badalados por cinco minutos sem interrupção. Nos resto do dia, o sineiro trabalha em seu escritório. Porém, encara a relação de meio século com o sino como uma missão.
Marilene vive em uma casa de pedra em Silveira Martins
A aposentada Marilene Anversa, 70 anos, viveu a vida inteira dentro de uma casa de pedra na localidade de Linha dos Mantuanos, na zona rural de Silveira Martins. Mas não é uma moradia qualquer. Foi construída pelas mãos dos seus antepassados imigrantes há quase 130 anos.
Na parede da frente, afixada no lado esquerdo da porta de marco verde, uma placa informa aos visitantes: "Casa de pedra construída por Henrique Anversa em 1896". O construtor era o seu próprio bisavô.
A casa ainda possui uma série de objetos centenários, especialmente no sótão. Lá em cima, as relíquias empoeiradas – itens como ferro de passar, latas, garrafas, pilão de fazer canjica, serrotes e lampião – simbolizam um passado de dificuldades e de intenso trabalho dos primeiros italianos a se instalarem na região da Quarta Colônia do Estado.
Silveira Martins respira história. As primeiras levas de imigrantes chegaram ao Barracão de Val de Buia, onde hoje pode ser vista uma imensa cruz do Monumento ao Imigrante.
Dali, os europeus partiram para outras localidades, dando origem aos demais núcleos da Quarta Colônia – Vale Vêneto, Val Veronés, Ribeirão, Polêsine, Soturno (Nova Palma), Geringonça (Novo Treviso), Dona Francisca e Núcleo Norte (Ivorá).
Trajando blusa verde, calça de abrigo preta e chinelos de dedo, Marilene caminha pelo piso de madeira do sótão da residência, manuseia as peças com cuidado, carinho e respeito.
— Eu carrego para o resto da vida essa lembrança deles, dos meus avós. Eu amo esse lugar, eu amo, amo — repete.
O casarão soma oito peças, contando o espaço do sótão. O assoalho em madeira ainda é original. Apenas as janelas e as portas foram trocadas nesse tempo todo, e o telhado sofreu pequenas intervenções.
É um orgulho ter nascido e viver aqui.
MARILENE ANVERSA
Moradora da casa de pedra
Ela fala que passou dificuldades no passado por viver em um local tão distante. Mas menciona que todas as pessoas se conheciam e costumavam se visitar com frequência. Emocionada, chora ao lembrar com saudades dos familiares já falecidos.
Marilene revela que os pais faleceram dentro de casa, e a morte da mãe, há três anos, ainda a deixa sensibilizada.
— Sinto muita falta da minha mãe. Convivi sempre com eles. Me dói muito a falta deles.
Visitantes sempre aparecem na casa de pedra para ver se alguém ainda vive ali. Também parentes curiosos – vindos de regiões como Passo Fundo, Catuípe e Sertão – para saber se a moradia permanece firme. Essas visitas ocasionais significam um momento de satisfação para a moradora.
— É um orgulho ter nascido e viver aqui.
A maior dificuldade são os acessos e as distâncias. O mercado mais próximo fica no centro de Silveira Martins. Com vias formadas por terra e pedras, além de sucessivos aclives e declives do trajeto, os deslocamentos precisam ser feitos de carro.
O marido José Luiz Chaves, 65, adquiriu um terreno no centro do município e planta verduras para comercializar todas as terças-feiras na cidade. O dinheiro ajuda na renda da família. O desejo dele é ir para as facilidades e o conforto da zona urbana; o da esposa é permanecer onde tudo começou para sua família em tempos antigos.
— Só não tenho dinheiro para conservar melhor a casa de pedra. Estou achando mais difícil sair agora que tenho mais idade — comenta Marilene, completando:
— O meu marido quer ir para o centro, mas, por mim, viveria aqui para sempre.
As nonas de São João do Polêsine e a massa agnolini
As irmãs Iracema Marchezan Bulegon, 82, e Sueli Marchezan, 79, dominam os segredos do preparo da massa agnolini, em São João do Polêsine, onde vivem há mais de seis décadas. As duas aprenderam a receita com a mãe.
Primeiramente, o município foi denominado de Terra de Manoel Py. O nome atual foi incorporado posteriormente. Foi uma forma de agradecer ao Padroeiro São João Batista pela acolhida positiva na terra nova.
Além disso, a lembrança da Polêsine situada no norte da Itália foi preservada pelos colonizadores. Atualmente, a gaúcha São João do Polêsine é conhecida pelo distrito de Vale Vêneto, onde o tempo parece ter sido congelado.
No início, as duas irmãs cozinhavam apenas para a família, mas precisaram expandir. Motivo: o sabor ficou conhecido pela vizinhança e agora as duas são requisitadas para levar o prato, uma variação do capeletti, para as festas da comunidade.
Dona Iracema utiliza os fundos da casa, situada na parte central da cidade, para preparar a massa. Em uma comprida mesa, recheia partes com frango – criados na própria propriedade – e outras com salamito. A cozinha só será usada na hora de fritar as peças em uma panela carregada de banha de porco. O cheiro escapa do ambiente e toma conta do pátio. Mesmo quem não tem fome, fica com água na boca.
— Coloco ovo puro, sal e um pouquinho de azeite para a massa ficar lisinha. Depois vou espichando. Quando termino de fazer a massa, passo ela em um cilindro grande e faço a massa fina — explica sobre as etapas.
Na sequência, a moradora de São João do Polêsine, vestindo avental azul e touca branca, compartilha detalhes sobre a preparação do recheio:
— Tiro a carne do osso, cozinho e depois passo na máquina manual de moer. Coloco tempero, noz-moscada, pimenta e sal.
Quando o alimento típico é servido, o formato lembra pequenos pasteizinhos. A mistura dos sabores do recheio com a massa torna a iguaria deliciosa. As irmãs também fazem a massa agnolini com outros ingredientes, como espinafre e queijo.
A cozinheira aproveita para esclarecer sobre as diferenças para o capeletti.
— É o mesmo, só que no capeletti fazem o tamanho maior. Antigamente faziam grande e nós agora fazemos pequeno — observa.
(...) Eu poderia ter uma cuidadora e ficar sentada. Mas enquanto eu puder fazer, eu faço. Quando não puder mais, eu paro.
IRACEMA MARCHEZAN BULEGON
Nona da massa
Os ingredientes são retirados da horta existente no jardim da casa. Por essa razão, os itens são sempre frescos e escolhidos cuidadosamente.
Sobre o sentimento de reproduzir a massa como aprendeu de seus antepassados, em um momento de comemoração dos 150 anos da imigração italiana no Estado, dona Iracema demonstra entusiasmo:
— Eu gosto de fazer. As minhas filhas dizem para eu parar de fazer tanta coisa. Ah, mas eu digo: "Faço o que de tarde?". Por isso me dedico a fazer ainda com essa idade. Eu poderia ter uma cuidadora e ficar sentada. Mas enquanto eu puder fazer, eu faço. Quando não puder mais, eu paro.