
"Se acaso lhe faltar a fé e triste estiver, corra até seu congá". Esse é um trecho de um ponto a Oxalá — ou seja, uma música em homenagem ao orixá considerado, nas religiões de matriz africana, o criador do mundo.
A letra diz: se estiver sem fé, procure seu altar. Mas o que fazer se, um ano depois da maior catástrofe da história do Rio Grande do Sul, grande parte dos praticantes dessas religiões ainda não tem um local para sua fé? De acordo com um levantamento do Conselho Estadual do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul (CPTERGS), 80% dos 850 terreiros afetados pela enchente de maio de 2024 não se recuperaram.
O CPTERGS, em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), enviou um formulário aos terreiros para aferir o impacto da enchente. Segundo o presidente, Baba Diba de Iyemonjá, foi verificada a necessidade de recursos para a reconstrução dos espaços, com mobília, imagens dos santos ou adornos. Passado um ano, no entanto, não foram recebidas verbas.
— Não conseguimos, de fato, acessar o poder público. O contato sempre esbarrava em questões burocráticas. Sempre diziam que o Estado é laico e não poderia destinar verba para os terreiros. Mas, se fosse assim, não haveria pastas nos ministérios, por exemplo, para tratar disso. Acaba se tornando um racismo religioso institucional — opina.
Conforme o presidente, a única ajuda recebida até agora foi da Defesa Civil do RS, por meio da doação de roupas, e de cestas básicas através do Ministério da Igualdade Racial. O Instituto Ibirapitanga, uma organização privada dedicada à equidade racial, fez uma doação de R$ 100 mil para o Conselho, que distribuiu o recurso entre 38 casas de religião.
— Depois de um ano, seguimos na luta. Quem tem orí, não abaixa a cabeça — afirma o presidente, citando o orixá pessoal, que guia a vida dos praticantes.
"Resistência, luta e revolta"
Julio Cezar Santos, mais conhecido como Bàbá Julinho d'Òsalá Òbokún, é zelador do Ilê Àsé Òbokún, no bairro Harmonia, em Canoas, e viu o seu terreiro coberto pela água da enchente. O espaço permaneceu fechado até julho, quando foi finalizada a limpeza, mas as cerimônias só foram retomadas totalmente em dezembro.

Segundo o pai de santo, os quatro meses de recuperação foram destinados a limpeza, restauração das imagens e organização do espaço. Das figuras que havia no congá, cinco não apresentavam condições para restauro. Dos oito tambores, restaram três.
— Vamos fazendo aos poucos, porque tem que mexer com o sagrado, tem que buscar toda uma essência. Não é só chegar e fazer. As ervas, agora que estamos começando a plantar. Na terra eu não estou plantando nada ainda, porque precisa desse processo.
Julinho estima que gastou R$ 100 mil, mas que seriam necessários aproximadamente R$ 500 mil para restaurar o espaço com totalidade.
— A sensação é boa (de reabrir o local). É de resistência, de luta e de revolta. Eu ainda tenho essa memória — enfatiza. — O recurso saiu da gente mesmo. Dos braços, dos clientes e dos amigos, mas o governo mesmo não apareceu. Foi ajuda da comunidade, nós por nós mesmo.
O espaço, além de abrigar o terreiro, conta com a casa onde moram o Pai Julinho e a mãe dele, de 93 anos. Nos fundos funcionava um centro cultural. Lá, ainda não foi possível retomar as atividades.
"Não me pergunta de onde tirei tanta força"
Beatriz Gonçalves Pereira, mais conhecida como Mãe Bia de Yemanjá ou Bia da Ilha está retratada na pintura no prédio do Daer, na Avenida Borges de Medeiros.

Moradora da Ilha da Pintada, Bia é mãe de santo do terreiro Reino de Yemanjá, Oxóssi e Xangô, a uma quadra do Rio Jacuí. No dia 4 de maio de 2024, em meio a enchente, ela foi obrigada a deixar o lugar.
— A água estava em cima do meu peito. Eu saí de dentro do terreiro porque eu não sei nadar, e subia muito rápido. E não me pergunta de onde tirei tanta força, mas as coisas começaram a boiar, peguei umas caixas de isopor, juntava as imagens e colocava dentro.
Lá, a água só não cobriu o telhado. Móveis, bancos, prateleiras, colchões e adornos foram perdidos. Foram danificadas a fiação elétrica, a pintura das paredes e o assoalho. As quartinhas, objetos sagrados que representam a conexão dos praticantes com os orixás e entidades, foram salvas.
Depois da enchente, quando a água baixou, Bia conseguiu retornar ao terreiro. O cenário era de muito barro. Mãe Bia ainda não retornou para a casa dela, que fica atrás do salão religioso.
Ajuda mesmo em meio à catástrofe
Quem conversa com Bia se depara com uma pessoa animada, falante e alegre, que mesmo durante a intempérie não deixou de prestar auxílio.

— Temos força, fé e necessidade. E não adianta eu fazer um belo discurso "porque eu sou mãe", mas numa hora dessa, mesmo eu estando ferrada, acabada, tenho de saber onde estão meus filhos, dizer uma palavra para eles, encorajá-los. Esse é o meu papel, porque senão eu não sou mãe (de santo).
Yá Rosemeri de Xangô, que é irmã de Bia, conta com um Ilê (terreiro), no mesmo pátio. Lá, nada ainda foi recuperado.

— Às vezes, tem de segurar a mão e dizer: "Filho, eu estou aqui". Mesmo que esteja explodindo por dentro, tem que levar esperança e botar um brilho superior que só os pais nos dão, mesmo que a gente vire as costas e se desmanche chorando.
Eliane Beatriz Liemos Ribeiro mora a poucos metros do local e frequentava o terreiro. Sua casa foi devastada pelas águas. Questionada se conseguiu salvar algo, ela responde:
— Não... Quer dizer, consegui, né? As nossas vidas. O resto tudo foi perdido. Mas nunca soltamos a mão de ninguém. Nunca perdemos a espiritualidade.

Batendo à porta do governo
O mesmo cenário vivido por Pai Julinho, em Canoas, foi o de Bia. A reconstrução possível até aqui foi feita com recursos próprios, ajuda do Conselho de Terreiros e de amigos. Questionada sobre o direcionamento de recurso público, ela responde:
— Para os terreiros? Nada. Qual é a nossa preocupação? A maioria de nós mora dentro do próprio terreiro. A compra assistida só te dá uma casa, e como que tu faz?
É o caso de Maria Eduarda Oliveira da Silva, mais conhecida como Duda de Xangô, regente da Casa de Todos Nós, também na Ilha da Pintada. Ela conseguiu reabrir o espaço religioso, mas a moradia, que ficava ao lado, não.

Depois de três meses em abrigo e recentemente morando em casa alugada, ela conseguiu um apartamento em Canoas, mas não poderá levar o seu espaço de religião.
— Como as pessoas precisam de casas, os terreiros também precisam de um lugar. Por que temos de ser excluídos?
Dados do Censo de 2010 apontam que, no Rio Grande do Sul, há 157 mil pessoas que se identificam como praticantes de umbanda ou candomblé. O Estado fica à frente, inclusive, da Bahia, com 47 mil, e do Rio de Janeiro, com 141 mil. Dados do Censo 2022 sobre este tema devem ser divulgados em junho. O Conselho estima que, ao todo, existam 65 mil centros de prática no Estado.
O que diz o governo?
A Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH) do RS afirmou que ainda em julho de 2024 o governo do Estado instituiu um Grupo de Trabalho Intersetorial voltado acompanhar os impactos da enchente. O governo reconhece que não houve liberação de recursos financeiros para o grupo e, sim, que a Secretaria atuou como mediadora e articuladora. A pasta lembra que, na época, foram disponibilizados veículos, cestas básicas, água potável, assessoria técnica e recursos humanos.
Em resposta à reportagem, o Ministério da Igualdade Racial afirmou que prestou ampla assistência governamental voltada aos povos e comunidades tradicionais de terreiros e de matriz africana, com mapeamento, apoio no cadastro de famílias atingidas, recursos e entrega de cestas básicas e outros insumos. Ao todo, foram doadas 3.300 cestas de alimentos a terreiros afetados em 230 comunidades de 10 municípios. O Ministério também coloca que destinou cerca de R$ 200 mil em apoio logístico. A pasta afirmou que vem estudando a possibilidade de criar planos de gestão territorial e ambiental para terreiros. O levantamento do Ministério aponta 645 terreiros diretamente impactados na enchente.
