Ao longo de dois meses, em 2022, Patrícia Azeredo e o marido, Fabio Azeredo, ambos com 51 anos, acessaram diariamente o aplicativo Adoção na expectativa de encontrar a futura filha.
Nenhum perfil se conectava de modo especial com os pretendentes. Em uma tarde, um sentimento diferente levou Patrícia a acessar a plataforma. Ao abrir o app, lá estava Netlin, à época com nove anos.
— Tinha a idade e as características que queríamos, porque desejávamos uma criança com deficiência, síndrome de Down, e ali já manifestei interesse. Posteriormente, me disseram que fazia só cinco minutos que a tinham colocado ali. Então, acredito que teve uma intervenção divina de "vai lá, entra que ela já chegou" — relembra a mãe.
Desde que foi lançado no Rio Grande do Sul, em 2018, o aplicativo auxiliou em 155 adoções, número que representa 4,8% das adoções no Estado (3.205). Além disso, 39 estão em guarda para fins de adoção. A iniciativa é fruto de parceria entre o Tribunal de Justiça do RS (TJ-RS), o Ministério Público do RS (MP-RS) e a Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS).
Perfis menos buscados
Neste domingo (25), é comemorado o Dia Nacional da Adoção. No Brasil, atualmente, 5.281 crianças e adolescentes aguardam um novo lar, sendo 591 no RS. Cinara Braga Vianna, promotora da Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre do MP-RS, lamenta:
— É muito triste saber que aproximadamente 95% das crianças aptas não serão adotadas, vão permanecer no abrigo ou na casa lar (serviço de acolhimento institucional) até os 18 anos. E, ao sair, têm de dar conta de si.
Para os órgãos públicos, o resultado do app é motivo de comemoração, já que é voltado a incentivar a adoção fora do perfil mais desejado pelos pretendentes: até seis anos e saudáveis. A ferramenta, por sua vez, dá visibilidade a crianças de mais idade, grupos de irmãos e jovens com problemas de saúde físicos e/ou mentais.
Adoções tardias
Embora o total de 155 adoções possa parecer baixo, são jovens que, em outras circunstâncias, não teriam condições de adoção, aponta Cinara. O juiz-corregedor Luís Antônio de Abreu Johnson, coordenador da Coordenadoria da Infância e Juventude do Rio Grande do Sul (CIJ-RS) do TJ-RS, também avalia o impacto como positivo:
— Evidentemente, são adoções tardias, difíceis. Melhorou e muito — afirma. — Essas crianças ficariam a vida toda dentro de um abrigo. Essas ferramentas são muito importantes. São aquilo que nos viabilizam a concretizar o direito (à família).
O número de adoções pelo app, entretanto, tem diminuído desde 2022. Para o juiz, a divulgação pode ajudar a melhorar os índices novamente.
Oportunidade para quem não tem chance
Patrícia e Fabio já eram pais de dois homens, atualmente com 21 e 25 anos, e são avós. A massoterapeuta, porém, sempre teve o desejo de ser mãe de menina e de adotar. Queria uma filha já com mais idade.
A decisão de adotar uma criança com deficiência foi tomada durante o processo de habilitação.
— Já que íamos dar oportunidade para uma criança sair do abrigo, quisemos dar para uma que realmente não tinha chance de sair — recorda Patrícia.
Foram cerca de três meses até Netlin, recentemente diagnosticada com transtorno do espectro autista (TEA), estar com a família. A pequena ficou espantada ao descobrir que teria um quarto só seu, recorda a mãe. Fabio constata:
— Eu a vejo hoje muito feliz.
Netlin relata:
— Gosto da nossa casa, de filme com pipoca, ir na praça e jogar dominó.

Fotos, vídeos e sonhos
O app de adoção traz fotos, vídeos, desenhos, sonhos e expectativas dos jovens, que devem consentir em participar. Somente os pretendentes habilitados têm acesso à ferramenta. A iniciativa gaúcha chegou a receber reconhecimento do Senado Federal.
— Por que o app deu tão certo? Porque visualizar o vídeo da criança e a forma de se expressar e sorrir é algo que cativa. É impactante, porque se torna real — avalia a promotora Cinara Braga Vianna.
Uma das finalidades do app é sensibilizar os pretendentes para uma mudança no perfil desejado por meio da empatia, evidenciando que há outro contingente de crianças que necessita uma família, explica o juiz Johnson. Para esses perfis, a tramitação é mais rápida.
Responsabilidade na mudança
O fundador e presidente da Elo — Organização de Apoio à Adoção Peterson dos Santos tem ressalvas quanto a uma troca de perfil motivada por fotos e emoção. Para ele, deve haver desejo genuíno. O assistente social receia que as famílias não estejam preparadas para as demandas de um perfil diferente, para o qual não foram avaliadas.
Conforme Santos, a ideia do app é "boa e inovadora". Reconhece que muitas famílias deram certo por meio da ferramenta e que há casos que aconteceriam somente dessa forma.
Em sua avaliação não apenas do aplicativo, mas da busca ativa por adoção como um todo, falta preparo e acompanhamento pós-adoção para que situações como devoluções não aconteçam:
— É definitivo para a vida toda. E o quanto de respaldo e apoio os pais terão após essa adoção? Porque essa troca (de perfil do adotado) foi motivada e tem uma responsabilidade, inclusive, dos órgãos públicos que fizeram a divulgação dessas crianças.
Ajustes de ambas as partes
Patrícia relata que a adaptação foi conturbada em sua casa e exigiu ajustes de ambas as partes: pais e filha. O início demandou grande envolvimento, levando Patrícia a se afastar do trabalho para poder se dedicar à situação. A pequena também passou pela fase — comum — de testar os novos pais.
— Ela veio com muitas questões comportamentais do abrigo. Não foi fácil. Precisei dizer para ela: "Filha, voltar não é opção, entendeu? Agora eu sou tua mãe, o Fabio é teu pai, e é aqui que tu vais ficar, e a gente vai sentar e conversar". Ela foi se acalmando, e agora está superbem inserida — compartilha.
Motivação verdadeira
Marleci Hoffmeister, analista do Poder Judiciário e assistente social, concorda que os pretendentes precisam ser trabalhados para mudar o perfil do adotado e deve ser avaliado se há motivação verdadeira. No sistema de adoção como um todo, explica ela, não é obrigatório passar por nova avaliação psicossocial, mas, de modo geral, os pretendentes são reavaliados.
O juiz-corregedor Luís Johnson vê tentativas de "devolução” como irresponsabilidade dos pais. O termo é rechaçado pelo magistrado por não ter base jurídica. Enfatiza que o jovem se torna filho, como se fosse biológico, não sendo um produto que pode ser devolvido. A lei estipula que a adoção é irrevogável. O pós-adoção é importante, mas o afeto da família também, frisa o juiz.
Parceria
Pensando nessas questões, o grupo Elo, que realiza curso de preparação para adoção, firmou parceria com o TJ-RS para auxiliar também no pós-adoção. Durante três meses, o grupo auxilia os novos pais. São encontros quinzenais e online — ou seja, podem ser acompanhados de qualquer lugar do Estado. As famílias devem ser encaminhadas pelos juízes. Para Santos, contudo, o Judiciário não tem indicado tanto quanto deveria.
Marleci, analista do Poder Judiciário e assistente social, reconhece que é necessário maior acompanhamento. O encaminhamento para o projeto pós-adoção é uma decisão de cada juiz, e o juiz-corregedor Luís Johnson afirma que o tribunal tem primado para que isso ocorra.
Como alinhar as expectativas
A responsabilidade dos pretendentes na mudança de perfil é grande, frisa Liziane Guedes, psicóloga e especialista em adoção. A decisão deve considerar questões como a motivação para adotar, apoio familiar, recursos financeiros e se há letramento racial.
Os pretendentes devem refletir sobre expectativas antes de conhecer a criança, pois ela terá desafios de pertencimento, já que teve uma família de origem e passou por acolhimento institucional.
— Essas rupturas influenciam a condição da criança de criar novos vínculos. Se ela encontra pretendentes com expectativas muito rígidas, pode sentir mais insegurança no processo e temer uma nova ruptura, um abandono, e isso pode atrapalhar ou impedir a transição para a filiação adotiva — explica. — As memórias precisam ser acolhidas pelos pais adotivos, especialmente no caso de crianças maiores.
A preparação deve ir além da habilitação, defende ela, incluindo grupos de apoio, psicoterapia e reflexões sobre a parentalidade para evitar idealizações. É crucial buscar orientação parental especializada, fortalecer vínculos no pós-adoção, conversar com famílias adotivas e consumir literatura na perspectiva dos pais e dos filhos adotivos.
— Cabe compreender que cada criança tem uma história de vida e é uma pessoa de carne e osso — adverte Liziane.