Por Léo Gerchmann
Jornalista, autor de, entre outros, “Jayme Copstein ao Quadrado” (2019)
A história é bem conhecida, por ser uma das páginas heroicas da resistência ao arbítrio que marchou sobre o Brasil entre 1964 e 1985. Era outubro de 1975. O rabino Henry Sobel, aos 32 anos, enfrentou a carranca vetusta da ditadura militar em seu auge, repudiando as adulterações grotescas de provas e ministrando o enterro do jornalista judeu Vlado Herzog sem considerá-lo um suicida. O gesto simples de se recusar a enterrar Vlado no setor do cemitério judaico de Butantã destinado a quem tirou a própria vida foi uma ação silenciosa e eloquente de negação à desfaçatez, à desumanidade, à truculência e ao crime fardado.
Pudera. A falsidade só não era risível em razão da gravidade trágica contida no episódio. O judeu iugoslavo Vlado, rebatizado Vladimir no país para onde sua família acorrera ao fugir do nazismo na Europa, aparecia em foto com uma corda amarrada ao pescoço, mas as pernas dobradas e apoiadas no chão. Elementar para qualquer legista: o enforcamento requereria que o corpo da vítima estivesse dependurado à soga.
O que havia era um homicídio, e o regime militar contava com a complacência generalizada e com a impunidade para sustentar uma versão forjada.
– Vi o corpo! Não havia dúvidas de que ele tinha sido torturado e assassinado – concluiu o corajoso Sobel, sem meias palavras, em uma época na qual todos mediam tudo o que dissessem.
Também é sabido que, diante desse surpreendente enfrentamento promovido pelo rabino, a ditadura militar jamais voltou a ser a mesma. Dias depois, Sobel, ao lado do arcebispo paulistano dom Paulo Evaristo Arns e do pastor presbiteriano Jaime Wright, liderou ato ecumênico na catedral da Sé, reunindo milhares de pessoas naquela que se tornou uma das mais simbólicas e famosas manifestações políticas da História do Brasil. Passados dois anos, em outubro de 1978, a Justiça deu razão ao rabino e responsabilizou o governo federal pela morte de Vlado. Apenas mais um ano, e veio a anistia de 1979, com a volta dos exilados. E o regime ruía velozmente, até chegar ao seu fim formal, já totalmente desacreditado, em 1985.
Assim é a História, e por si só essa página essencial para a redemocratização brasileira serve de motivo para Sobel, nascido em Portugal (em 9 de janeiro de 1944), criado em Nova York e morto em decorrência de um câncer aos 75 anos no último dia 22 em Miami, ser reverenciado como o herói nacional que foi. Mas o que havia no íntimo desse grande homem? O que sustentou sua ousadia e lucidez durante a repressão? Talvez essas palavras de Sobel ao falar sobre a própria missão como líder espiritual esclareçam quem ele era:
– A missão do judeu não é tornar o mundo mais judaico. A missão do judeu é tornar o mundo mais humano.
Para um rabino como Sobel, talvez essa frase seja pleonasmo. Judaísmo e humanismo se confundem. Está na essência da fé judaica, em cada palavra da cultura, na base da tradição. Está na crença em um só Deus e na lógica de não fazer ao outro o que não se quer para si, talvez o grande alicerce da civilização, do respeito às diferenças, da democracia.
O resto, dizem os estudiosos que se debruçam sobre os livros sagrados, é interpretação de cada um. Não proselitista por natureza, o judaísmo se preocupa apenas com esses valores solidários e plurais, que, nas palavras do venerado sábio Hillel, podem ser exercitados de “70 formas diferentes”.
Sobel respeitava a todos. Era vocacionado para a pluralidade. Estendia a mão. Há fotos suas com líderes de diferentes matizes, sejam eles religiosos ou políticos. Fora da sinagoga e longe das liturgias, era na rua que desempenhava a essência da sua fé. Usava a palavra como ponte, o verbo como meio de compreensão, como veículo de empatia, aos ser ouvida ou proferida.
Com Vlado foi assim. Quem era Vlado?
Um homem de pensamento político moderado que aderiu ao Partido Comunista porque via ali a oportunidade de lutar contra a ditadura sem apelar para as armas. Um sujeito da paz, que se apresentou para prestar esclarecimentos voluntariamente ao DOI-CODI, no quartel-general do II Exército, e de lá nunca saiu. Um judeu que exercia do seu jeito os fundamentos de uma cultura humanista. O rabino se condoeu do jovem iídiche iugoslavo que tinha apenas 37 anos, cinco a mais do que ele próprio. Recusou-se a acatar a farsa castrense. Preferiu atender ao clamor civilizatório da Torá e tratou de cumprir a missão básica do tikun olam (“conserto do mundo”, em hebraico). Certamente não é mera retórica e estão longe de ser vãs as palavras segundo as quais Sobel fará muita falta.