A menina Alice Vitória se apresentou ao mundo em 14 de outubro de 2015 com a cabecinha bem menor do que a de um recém-nascido. Embora a sinfonia do choro tomasse a maternidade do Hospital De Ávila, em Recife, o que prendia a atenção dos pais Nadja Cristina Gomes Bezerra e João Batista Bezerra era o rosto diminuto, de bochechas mais volumosas do que o alto achatado da cabeça, com penachos de cabelo castanho e olhos agitados.
- Ela tem orelha de abano! - exclamaram as enfermeiras, animadas, como se alertassem os pais: "Olha, sua filha está viva".
Mas Nadja e João Batista aguardavam Alice como ela viesse. Ansiavam por acolher o bebê, não importava como. Dois meses antes, já haviam sofrido trauma brutal ao receber a notícia-bomba do quadro de microcefalia. A eles foi sugerido que abortassem logo - e falaram da forma mais perversa possível.
Foi no exame de ultrassonografia de sétimo mês de gravidez que um médico especialista em feto despejou na cara do casal a sentença de que o bebê mal chegaria vivo ao nono mês. A tela do computador mostrava o perímetro da circunferência do cérebro de apenas 27cm, bem abaixo do mínimo de 32cm de um feto considerado normal, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O diagnóstico foi cáustico: se nascesse, viveria em estado vegetativo.
O modo cruel como os Bezerra souberam da má-formação do bebê multiplicou o impacto da revelação da doença. Nadja surtou na hora. Depressiva, sem tomar remédios por causa da gravidez, ela passou aos gritos o restante da consulta na clínica e os dias seguintes em casa, no alto da ladeira de uma rua de chão batido no bairro Ibura, um dos mais pobres, populosos e distantes ao sul da capital de Pernambuco.
- Eu pensei: "Vou morrer". Gritei, porque ele (o médico) falou de um jeito tão assim que eu não acreditava - disse Nadja.
- A gente queria gravar as imagens do ultrassom em um CD, o médico tomou da minha mão e disse: "Guarde lembranças boas, não grave isso, não" - contou João Batista.
As pernas do cabra, nascido há 54 anos em Afogados, na periferia pobre de Recife, fraquejaram. O doutor ainda levou a mão ao ombro do pai e falou com frieza de pedra:
- Pai, se eu fosse você, faria outro.
De jeito nenhum haveria outro filho. Aos 42 anos, há muito Nadja estava convencida a ligar as trompas. Seu quadro de depressão se aflorou no pós-parto do primeiro filho, Jonatan, de 14 anos, nascido "puxado a ferro". Todo esse tempo ela viveu sob medicamentos que a ajudavam a lutar contra a ideia da morte nas horas mais aflitivas.
Com a gravidez recente, Nadja deixou os remédios. Expurgou os surtos pensando em Alice e assim conviveu sete meses de sonhos providenciando enxoval, comprando berço, guarda-roupa e cômoda e construindo, na moradia de alvenaria com dois quartos, sala e cozinha, um cantinho a mais reservado ao novo Bezerra. Tudo desabou em 27 de agosto, o dia da consulta com o especialista em feto - que havia sido indicado a Nadja pelo seu médico do pré-natal, Marcelo Dantas.
Nadja falou exasperada com Dantas. Ele a acalmou e pediu que não abortasse, contrariando o colega. Ela não abriria mão de Alice. Mas passou os últimos dois meses da gravidez sob depressão profunda.
- Muitas vezes eu chorava de madrugada e ligava para o meu médico, ele atendia e dizia: "Tenha calma". Eu dormia chorando e acordava chorando. Eu não sei como o bebê não morreu na minha barriga. Não tinha ânimo para mais nada, parei de fazer as roupinhas dela e cancelei um chá de fraldas - contou Nadja.
O quarto do nenê, comprado com muito esforço, restou a um canto da casa, empacotado. Não tinham coragem de montá-lo. A semanas do nascimento, a tensão tornou-se insuportável na casa dos Bezerra. Nadja quase não dormia, apesar do jeito sereno de João Batista e de sua voz grave pedindo calma à mulher. Mas a pressão da mãe subiu demais, teve de ser internada por dois dias na UTI, e o parto foi antecipado em quatro dias.
A doença de Alice levou os pais a prestar mais atenção nos vizinhos. Pela vila de Ibura corriam comentários sobre o nascimento de bebês com microcefalia porque a mãe havia contraído o zika vírus. Só então Nadja se deu conta de que a infestação de pintinhas que lhe causaram coceiras terríveis em abril não era devido à rubéola, como imaginava. Nem à dengue, como suspeitavam os médicos. Era o zika. Chegou no terceiro mês de gestação de Nadja e afetou o desenvolvimento do cérebro do feto.
Na época, pouco se conhecia e se falava do zika, embora Pernambuco tenha sido pioneiro no país em detectar casos da doença e na criação de protocolos de notificação de microcefalia. Centro de referência em infectologia pediátrica no Estado, o Hospital Universitário Oswaldo Cruz recebe em Recife 15 a 16 novos suspeitos por dia - segundo a chefe da infectologia pediátrica na instituição, Ângela Rocha -, o que consolida a triste estatística de 311 casos notificados até o dia 21 em Pernambuco. Recife é a capital do zika vírus.
- Até 40 dias atrás, 100% dos registros eram de Pernambuco, hoje são 38%, o que mostra o quanto a epidemia se alastrou pelo país - explicou Ângela.
Tudo isso Nadja acabou descobrindo na internet, com a ajuda de Jonatan. E seguiu a romaria de socorro à pequena Alice dotada de uma perseverança incomum em meio aos choros provocados pela depressão que ressurgiu com todo o desatino.
Em companhia da mãe, Josefa, e com a filha ao colo, tomava dois ônibus e metrô até o local das consultas no Hospital Oswaldo Cruz, na AACD e em clínicas particulares. Para isso, enfrentou o sobe-e-desce das ladeiras de Ibura e as conduções lotadas. Não podia contar com a ajuda de João Batista, porque os exames são pela manhã e ele trabalha até o início da tarde em uma empresa de limpeza de aeronaves no aeroporto Gilberto Freyre e se desloca de bicicleta pela cidade.
Desde o nascimento de Alice, cada sinal de vivacidade é motivo de comemoração com alegria transbordante. Começou pela vitória do parto. O nome pensado na família, Alice Valentina, mudou no cartório para Alice Vitória. O sentimento de triunfo aos poucos foi dando as caras.
O coração é perfeito. O passo seguinte foi conferir a visão do bebê.
- A gente estava ali olhando para ela, ela tinha de ver os pais. Quando veio a confirmação, eu chorei ali mesmo. Há muito não chorava assim, de alegria - contou Nadja.
Dias depois, o teste da audição criou outra carga de tensão.
- Se ela ouvisse, falaria também, não é? A menina ficava ligada a qualquer batida de porta, de panela. Eu tinha quase certeza, ela ouvia - acreditava.
Tem razão a mãe. Alice ouve, embora apenas com o ouvido direito.
- Me diziam muito: "Mãe, não se aperreie". E eu vou me apegando a cada estímulo, porque é difícil lidar com a depressão. Às vezes, penso se minha filha não vai morrer a qualquer instante. Ainda hoje vem a voz daquele especialista que desenganou Alice, e me bate o pavor.
O quarto da menina hoje está montado ao lado do aposento do casal. Pilhas de fraldas tomam a parte baixa do armário, doadas pelas amigas da empresa da qual Nadja está licenciada devido à depressão. Os avós Josefa e Geraldo, que moram na parte de cima e são os donos da casa, ajudam como podem.
Os quatro irmãos de João pensam em comprar em conjunto um carro para que o mano tenha maior mobilidade com o bebê em consultas. Sozinho, João não tem condições. Ganha, líquidos, R$ 658 por mês. Talvez a providência mais viável seja a compra de um ar-condicionado. Se o calor for aliviado, será possível fechar a casa em proteção à infestação de mosquitos que se espalha pela vila. Na segunda-feira, dia 21, às 20h, uma nuvem de mosquito pairava no início da rua dos Bezerra. Invadia até o quarto da menina, que, de tão pequena e frágil, não pode receber repelente. Os pais a vestem pelo corpo inteiro durante o dia e recorrem ao mosquiteiro à noite. Nenhum imprevisto pode acontecer. Nadja, com frequência, chama a vigilância sanitária, que aparece mas não soluciona, porque o lixo volta às ruas no dia a dia.
Não bastasse o drama da filha, há três semanas Nadja também contraiu o vírus chikungunya. Com dores pelo corpo, mal conseguia carregar Alice aos exames pela cidade.
Voltemos à última segunda-feira. Aos 57 dias de vida, Alice tinha um olhar sereno. Tentava chupar o bico, mas não fazia força suficiente. João prendia o bico à boca da menina com o indicador. Mesmo se tivesse força para sugar, não conseguiria tomar o leite da mãe. O líquido empedrou por causa do estresse e da tensão.
A grande indagação agora é se a menina vai andar. Ela devia ter reagido mais, no segundo mês de vida. Neste período, o perímetro do cérebro cresceu pouco, de 28cm a 29cm. E mantém calcificações que podem comprometer o futuro. Isso assusta muito a mãe de Alice:
- Só um centímetro em dois meses! Será que ela vai morrer? O nosso amor, sim, parece que dobra.
Entenda os sintomas e o tratamento das três doenças transmitidas pelo Aedes:
Entenda como o zika se espalhou pelo mundo: