
No meio de selfies, discussões sobre pena de morte, o novo clipe da última popstar, opiniões sobre futebol e fotos de bebês recém (ou ainda nem) nascidos, eis que surge o seguinte post no Facebook: "Gente, alguém aqui tem asma e precisa da bombinha aerolin? Troquei de medicamento e tenho algumas, não queria jogar no lixo mas também não sei o que fazer com elas". Menos de 10 minutos depois, as bombinhas encontram seu destino: "Meu filho tem asma e usa aerolin. Serão super bem-vindas. A dosagem dele é de 100mcg", responde uma usuária.
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Quem postou e quem respondeu estão entre os mil participantes da comunidade Free Your Stuff Porto Alegre. O FYS (literalmente, "liberte as suas coisas") é uma ideia que surgiu na Alemanha, virou sucesso em diversas cidades europeias e está dando os primeiros passos no Brasil - em São Paulo, tem mais de 3 mil membros. A versão gaúcha nasceu em setembro do ano passado.
Capitaneada pela jornalista Luísa Fedrizzi, 28 anos, permite a usuários interessados em doar ou receber objetos fazer suas ofertas e pedidos através do grupo na rede social.
VÍDEO: Luísa Fedrizzi explica como funciona a página
A ideia é simples: quem quiser se livrar de algum objeto em desuso dentro de casa, posta a foto do produto com as características na página da comunidade. Quem se interessar, responde que quer e, por mensagens privadas, as partes combinam a forma de entrega. E, por lá, vale quase tudo: de roupas a eletrodomésticos, de CDs virgens a produtos de cabelo, de fogões a instrumentos musicais.
Seja por solidariedade ou sustentabilidade, são dezenas de doações que ocorrem por dia, em uma dinâmica onde o espírito de comunidade é o que vale.
- É uma rede bem autossustentável. Até existem algumas regrinhas, mas a ideia é evitar o desperdício de tudo aquilo que fica parado em casa. Outro dia, uma pessoa estava se mudando e pediu caixas de papelão. Logo, uma outra menina que tinha acabado de se mudar ofereceu todas as caixas para ela - conta Luísa.
Atitudes como essa coincidem com a filosofia por trás do FYS. "O grupo é dedicado a todos nós que tendemos a acumular, acumular e a preencher espaços que poderiam ser usados para algo mais interessante do que um depósito ou um coletor de poeira", diz uma descrição na página da comunidade.
- Esses movimentos não são só modas, eles representam a crescente preocupação da população com os excessos do mundo capitalista e com os limites do uso de recursos naturais da terra - comenta o empresário Igor Oliveira, sócio da Semente Negócios e consultor de educação para empreendorismo.
- Aos poucos, os grupos vão ficando menos dependentes do dinheiro. São situações em que o capital social substitui, ou complementa, o capital financeiro.
Comunidade conta com manual de "boas práticas"
Guadalupe Albuquerque é uma das usuárias que mais utiliza a rede social para fazer doações em Porto Alegre
Para que a ideia seja multiplicável em qualquer lugar - tanto nas grandes capitais do mundo como nas cidades mais interioranas -, o grupo que criou a FYS elaborou também um manual de "boas práticas", que fica disponível para todos participantes.
Entre as normas, traduzidas por Luísa para a comunidade de Porto Alegre, estão evitar postagens de propaganda, lojas, aluguéis e tudo aquilo que envolva dinheiro, não fazer oferta de animais abandonados e não compartilhar mensagens racistas, sexistas ou discriminatórias.

- O espírito é relembrar as pessoas de que este não é um espaço de venda nem de troca, é de doação de coisas. Já tivemos casos de pessoas querendo doar animais, e tivemos que excluir as postagens, pois, como o próprio nome diz, é um local para se livrar de suas "stuffs" - aponta Luísa.
Conforme a jornalista, a grande vantagem de um espaço como esse na rede social em relação a brechós ou instituições de caridade é a disponibilidade e o imediatismo. Como funciona 24h por dia, as pessoas podem oferecer seus produtos em desuso no momento em que se dão conta que não os querem mais.
E, quem precisa de alguma coisa, pode procurar sem sair de casa. Foi o que estimulou a publicitária Guadalupe Albuquerque, 32 anos, a se tornar um dos membros mais ativos. Após conhecer a página por recomendação de amigos, ela não parou mais de doar produtos que estavam parados em seu apartamento:
- Me mudei há cinco anos e ainda tinha muitas coisas em caixas. Foi há pouco tempo que me dei conta que, se estavam fechadas há tanto tempo, era porque eu realmente não precisava delas. Então comecei a postar na rede social e imediatamente apareceram pessoas interessadas.
Guadalupe conta que já tinha o hábito de juntar roupas a cada troca de estação para doar a instituições de caridade, mas, para muitos outros objetos, não sabia que destino dar, e por isso acabava deixando-os atirados dentro de cantos e gavetas.
- Eu estava com uma TV de 46 polegadas estragada em casa e achei muito caro mandar para o conserto. Então comprei uma nova e postei a velha na comunidade, explicando que não estava funcionando. Logo um menino, que entendia do assunto buscou o aparelho, arrumou, e agora está na sala da casa dele, sendo bem utlizada. Eu me sinto muito bem fazendo isso.
Somente na útlima semana, a publicitária anunciou mais de 10 produtos para doar. Todos já passaram de entulho a útil.
Como participar:
- A comunidade: www.facebook.com/groups/freeyourstuffpoa
- Para se tornar membro: basta acessar o link e pedir para entrar na comunidade. Assim que o pedido foi aceito pelo moderador, você terá acesso à pagina
- Para doar: escrever em caixa alta "PARA DOAÇÃO", colocar foto do objeto e explicar detalhes
- Para pedir: escrever caixa alta "ESTOU PROCURANDO", descrever o objeto e coloca uma foto, se tiver
- As entregas são combinadas de forma privada pelas partes envolvidas
Conheça outras iniciativas que pregam o desapego
Amor no Cabide
Idealizada por três gaúchas, a iniciativa foi criada no inverno de 2014 como uma forma criativa de incentivar a doação de agasalhos. A proposta das jovens foi pendurar cabides em portões, grades, postes e até em pontos de ônibus de Porto Alegre para que qualquer um pudesse pegar ou doar um agasalho. Os exemplos se multiplicaram por meio de outros voluntários. Dezenas de cabides se espalharam por Porto Alegre, Caxias do Sul, Passo Fundo e outros Estados, como Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. A página no Facebook, onde as fotos do projeto e os "pontos de amor" em todo Brasil estão divulgados, já conta com milhares de seguidores.
Foodsharing.de
Criada no final de 2012 na Alemanha, é uma plataforma para a partilha de alimentos que, de outra forma, terminariam no lixo. A ideia da iniciativa é evitar o desperdício. É possível cadastrar o alimento que deseja doar, ou buscar o que gostaria de comer, com algumas regras, entre elas, doar apenas o que você comeria. Ao registrar o alimento, o usuário deve indicar onde ele está disponível e, através de um mapa que abrange todo o país, é possível descobrir que tipo de alimento está sendo compartilhado no próprio bairro. O site também oferece geladeiras comunitárias, que recebem restos de festas e de restaurantes.
Feira Grátis da Gratidão
É um evento itinerante que já ocorre em diversas capitais do mundo e há cerca de três anos chegou no Brasil. Diferentemente das feiras de troca, onde a pessoa só leva alguma coisa se tiver algo que o outro queira, neste evento é possível doar qualquer coisa, sem necessariamente levar algo no lugar. A feira é realizada em espaços públicos, geralmente parques e praças em diferentes bairros pela cidade. A organização começa no Facebook, onde mensalmente são votados local e data da edição seguinte. Porto Alegre ainda não entrou no roteiro.