Assim que a pele e os tecidos dos órgãos do agricultor Vilamir Tomaz Westerich, 27 anos, arroxeados pela falta de oxigenação, recuperaram a cor rosada que há muito haviam perdido, o cirurgião José Camargo sabia que aquele momento mudaria centenas de outras vidas.
Eram 5h30min de 16 de maio de 1989, e o primeiro transplante de pulmão da América Latina havia sido um sucesso na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
Não longe dali, no Instituto de Cardiologia da Capital, a equipe liderada pelo cirurgião Ivo Nesralla concluía outro feito na história da medicina. O professor de Educação Física da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) João Carlos Cechella, então com 35 anos, recebia o 10º coração transplantado na instituição que, quase cinco anos antes, havia sido pioneira nesse tipo de cirurgia.
Pelos recursos da época, Cechella sairia no lucro se sobrevivesse cinco anos. O professor, no entanto, superou os prognósticos mais otimistas e se tornou o mais longevo receptor de um coração no Estado - é o segundo mais longevo do Brasil.
Nesses 25 anos, os dois transplantes se tornaram símbolos da evolução da medicina. Cechella voltou a fazer exercícios, viajou, casou, descasou, criou os filhos. Westerich igualmente levou uma vida normal e morreu 11 anos depois, de tuberculose.
Uma legião de operados depois deles vive com pulmão e coração de outras pessoas. Agora, dos transplantes pulmonares, 60% dos pacientes sobrevivem ao quinto ano e 45% deles ao 10º ano. Há uma década, esperava-se que apenas 40% dos casos superassem cinco anos de vida. Proporções similares são também válidas para os transplantes de coração.
Até se transformarem em referência, os dois centros que nesta sexta-feira irão realizar cerimônias para marcar a data acumularam histórias de coragem. Enquanto o Cardiologia já realizava os primeiros transplantes cardíacos, a Santa Casa começava a se recuperar de uma grande crise estrutural pela qual passou no início dos anos 1980.
Camargo - que havia acompanhado transplantes nos Estados Unidos - pediu para participar de uma reunião semanal dos cirurgiões do Instituto.
- Lembro como se fosse hoje, o dr. Camargo chegou e disse: "vim aqui propor uma maluquice para vocês", o transplante de pulmão - relata Lídia Lucas Lima, enfermeira da equipe de Nesralla.
Um doador declarado
Indissociáveis, coração e pulmões passaram a ser retirados juntos em intermináveis treinamentos. Se algo desse errado, um poderia anular o outro.
Na noite de 15 de maio, com as duas equipes afinadas, um jovem acidentado de moto em Novo Hamburgo - que havia declarado na carteira de identidade a vontade de ser doador de órgãos - teve morte cerebral. A equipe do Cardiologia, conta Lídia, foi ao Hospital São Francisco da Santa Casa retirar o coração que bate firme no peito de Cechella.
O pulmão permaneceu no mesmo hospital, e a maluquice se transformou em rotina. Hoje, a Santa Casa realiza 60% dos transplantes de pulmão no Brasil.