Cartagena tem cerca de 30 pontos com alguma ligação com o escritor
A Ciudad Amurallada, Centro Histórico de Cartagena, é a mais completa para começar ou terminar a viagem com Gabriel García Marquez. A fortaleza erguida por espanhóis encarcerou o amor de Florentino Ariza por Fermina Daza em O Amor nos Tempos do Cólera. Pelas ruas estreitas e entre as mansões decrépidas, chegamos ao Portal de los Escribanos (hoje, de los Dulces), onde os protagonistas se encontraram pela primeira vez.
Perto dali está a Catedral de Cartagena, a mais importante das 44 igrejas da cidade. Foi onde Fermina recebeu furtivamente e com suores gélidos a primeira carta de Florentino, louco de amor na missa de Natal. Ela fica quase ao lado da Porta do Relógio, onde García Márquez ouviu falar de um tal coronel José Buendía, que em 1947 destoou da multidão. Os mais de 40 milhões de exemplares vendidos de Cem Anos de Solidão fizeram deste sobrenome e deste clã - Buendía - o mais íntimo dos leitores.
A pé ou de charrete, torça o pescoço para cima e sinta o perfume das sacadas de madeira com flores vermelhas, amarelas e brancas, concentre-se no barulho dos cascos dos cavalos, nos burburinhos urbanos, nas luzes indiretas e até nas gargalhadas dos bêbados alegres. Ao chegar ao Portal de los Mercaderes, fique atento aos perros. Ali Sierva María foi mordida por um cão raivoso e passou a ser possuída pelo diabo em Do Amor e Outros Demônios. Na época, o portal era ponto de mercado de escravos. Hoje, docerias e lojas de souvenir se espremem sob os arcos amarelo queimado.
Dica de viajante
:: Nem precisa se hospedar no Sofitel Santa Clara, antigo convento e desbunde de luxo que o fez ser escolhido um dos 20 melhores hotéis da América do Sul no ano passado. Peça ao recepcionista de luvas brancas para conhecer a cripta em que o padre Cayetano Delaura se apaixonou pela jovem Sierva María de Todos los Ángeles, a quem deveria exorcizar em Do Amor e Outros Demônios. O hotel fica bem ao lado da casa onde o escritor passava alguns meses quando visitava a Colômbia.
:: ROTEIRO
Em Cartagena, o tour eletrônico da Tierra Magna (tierramagna.com), com audioguias, produzido em parceria com a Fundação Gabriel García Márquez para o Novo Jornalismo Ibero-americano, leva a 35 pontos que fazem parte da biografia e do imaginário do autor. Custa cerca de R$ 55 por quatro horas.

VISITE TAMBÉM
:: Na Calle San Juan de Dios, número 3-81, o jovem repórter Gabriel Márquez arrumou seu primeiro trabalho em 1948, onde ficava o jornal El Universal. O pobre e iniciante dormia sobre as bobinas de papel.
:: Aos pés da estátua Noli me Tangere (Não me Toque), fora das muralhas, ouviu do pai, furioso ao saber da carreia de jornalista: "Comerás papel!".
:: À noite, o Barzuto Social Club, um dos locais favoritos de Gabo para comer empanadas, exibe fotos do escritor em suas paredes coloridas.
Em Barranquilla, sala com o nome do escritor emociona
O melhor vem no Museo del Caribe, na sala Gabriel García Márquez, que abre o circuito. Quando as persianas se fecham, o coração baixa a guarda: a mesa comprida de madeira com uma das máquinas de escrever usadas por Gabo. Aí mal dá pra ver as paredes com recortes e fotos preto e branco, esquerdistas, de censura à imprensa e também de Hemingway e Clark Gable.
O vídeo que começa a ser projetado nas duas paredes largas e altas é melhor do que as poucas adaptações de Gabo para o cinema que já vi. Acho que só o próprio seria capaz de narrar o que provoca em um leitor do que ele escreveu. Trechos pinçados com cuidado dos livros vão entrando com projeções em desenho e quadros bem marcados por acordes graves e firmes de piano e depois violão. Eu repeti mais duas vezes e sugiro que quem for faça o mesmo na sala, porque fica mais intenso.
Fora, o prédio de concreto soa brutalista e é praticamente a única coisa a ser visitada em Barranquilla. Uma incursão pela "Bolívar" mostra a Colômbia triste e desigual com canais fétidos de rio e esgoto, cercados de lixo e garrafas de rum quebradas que Gabo tanto descreveu.
Pelo Rio Magdalena
Com muito boa vontade, dá para ir até Boca de Cenizas, onde o Rio Magdalena encontra o mar e o pôr do sol é laranja, mesmo com o visual de casinhas de madeira e remendos feitas por pescadores gratos por terem comida à mesa todos os dias. Se for, apresse o passo na volta e vá de táxi, porque é mais seguro.
Enquanto estiver no trencito, uma jabiraca sobre trilhos, vire-se de frente para as águas caudalosas do Magdanela, onde o amor maduro de Florentino e Fermina navegou até o fim no grande barco com motor à caldeira, que enfrentou pântanos e viu tripulantes ficarem desnorteados com as "corpulentas fêmeas de peixe-boi, que amamentavam suas crias e emitiam lamentos de sereia".
Aracataca, ou Macondo, onde tudo começou
Em Viver para Contar (2002), quando voltava para Aracataca com sua mãe para vender a casa da família, Gabo pintou uma cidade desalmada pelo fim do ciclo bananeiro. Aquilo o marcou a ponto de inspirar Macondo, a cidade fantasia de Cem Anos de Solidão, que no fim das contas é "Cataca" mesmo. Em 2006, moradores tentaram, em vão, tornar real o nome ficcional do autor, inspirado numa estação de trem que, segundo ele, soava bem.
No acanhado museu montado na casa onde o escritor nasceu, em 1928, é preciso se valer do fôlego tomado nas páginas. Só assim para sentir a brisa úmida e quente com cheiro de jasmim soprando lá da infância de el Gabito, enquanto ele ouvia as histórias incríveis dos avós e a falação da inocente criadagem feminina que tomava banho enquanto ajudava o menino a se lavar.
O quarto e o berço foram recriados, já que os originais, de madeira, foram demolidos há quase 50 anos. A última reforma ocorreu em 2010. O pátio conserva uma frondosa amendoeira por um motivo que considero simples: sem esta sombra e este perfume, Gabo pra mim não há.
DICA
Aracataca é passeio para um dia, mais do que suficiente para, sob o calor abrasante, ver a Casa Museu (foto abaixo), os murais, os mulatos jogando dominó e bebendo rum, a estação de trem. Divirta-se procurando borboletas amarelas espalhadas pela cidade para lembrar Maurício Babilônia, de Cem Anos. Certa vez, Gabo contou que o personagem foi inspirado em um eletricista que chegava e subia no telhado. A avó costumava dizer que uma borboleta amarela entrava na casa toda vez que o homem aparecia.
Calor grudendo e chuvas "horizontais"
O ar quente e úmido do Caribe Colombiano deixa a pele grudenta em menos de um minuto. O baforão entra morno pelas narinas e dá para senti-lo chegar aos pulmões. Foi a primeira coisa da qual me lembrei quando chegamos a Santa Marta. E então, do vapor de flores, do vento aguardado pelos personagens diante das frondosas janelas. No dia seguinte, reconheci fácil as "horizontais de outubro", chuvas que vêm e vão sem avisar e formam uma cortina densa e inclinada. Elas vieram em Taganga e em Tayrona, o maior parque verde do país, com água clarinha, areia amarela e palmeiras de 30 metros a 12 passos do mar.
Santa Marta guarda outra história de Gabo só para si: entre a febre delirante, as recordações e a paixão incandescente por Manuela Sánches, Simón Bolívar passou suas últimas semanas de vida na cidade. Os dias de angústia e a tentativa da amada em chegar até ele estão em O General e Seu Labirinto. Visitar a superbem cuidada Quinta San Pedro Alejandrino, com cama, estátuas e objetos pessoais, como quase tudo em uma viagem como essa, é bem mais sinestésico para quem lê primeiro e viaja depois.
