Trajando um vestido azul forte de flores miúdas, uma menina de três anos e cabelos pretos longos anda de um lado para o outro na sala de casa. A mãe, na tentativa de educá-la, acabara de repetir a frase: "se você não se comportar, o diabinho vai te pegar". A cena está guardada na memória da administradora de empresas Carmem Paludo, 57 anos, e foi resgatada em uma sessão de hipnose há mais de 10 anos. Desde então, Carmem entendeu que as palavras da mãe fizeram com que carregasse a sensação de medo por toda a vida.
Durante o transe, sugestionada pelo médico, Carmem acolhia a criança e explicava que ela não era má, que a mãe a amava muito e que só teria dito aquilo para afastá-la do perigo. Após a emoção transbordar, aos poucos a paciente retoma os sentidos e escuta o hipnoterapeuta: "Você vai abrir os olhos e entender o significado de tanta angústia". Essa foi a senha para uma vida longe da depressão.
- Depois de algumas sessões de hipnose, pude entender que a garotinha assustada que eu visualizei era eu. Aquela conversa entre os dois egos _ o adulto e o infantil - serviu para apagar a sensação de que algo de ruim poderia me acontecer. É claro que meus pais não tinham a intenção de me traumatizar. Assustar as crianças é um comportamento típico dos adultos, mas que deve ser evitado - diz Carmem.
O fenômeno vivenciado por Carmem é a capacidade que 95% pessoas têm de inibir o autossenso crítico, abstrair e reviver fatos do passado. Funciona assim: o profissional dá uma sugestão, e o paciente a aceita como verdade, desde que não contrarie suas crenças e valores.
A partir daí, o tratamento que varia entre seis e 12 consultas pode amenizar dores físicas e problemas psíquicos.
- Pesquiso muito antes de me entregar a um tratamento e só creio naquilo que a ciência pode comprovar. Nas primeiras consultas, o meu lado racional ainda era muito forte. Demorei a me entregar à hipnose e levar uma sessão até o fim - disse Carmem, que passou pelas mãos de pelo menos dois terapeutas tradicionais, mas só conseguiu contornar a depressão com a hipnose.
A técnica pode ser coadjuvante em quase todos os tratamentos, inclusive, para doenças crônicas como câncer e hipertensão.
- É a cura de órgãos doentes pela imaginação - diz Ricardo Feix, clínico-geral e presidente do Instituto Milton H. Erickson Brasil Sul, um dos 130 centros de formação de hipnoterapeutas espalhados em 30 países e reconhecido pelo Internacional Society of Hipnosys.
Contra dores físicas e emocionais
No passado associada a magia e curanderismo, a hipnose cada vez mais é vista pela ciência como um recurso terapêutico para amenizar dores físicas e emocionais. O psiquiatra Rogério Wolf de Aguiar, primeiro-secretário do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), afirma que, apesar de pouco difundida, a técnica é reconhecida como prática médica.
O problema são os profissionais de todas as áreas, não necessariamente ligados à saúde, que se aventuram na técnica que, feita de modo errado, pode ser muito perigosa. O corpo e a mente do paciente ficam nas mãos do hipnotizador - diz Aguiar.
No Brasil, os estudos sobre o tema avançam lentamente.
- Poucos profissionais são praticantes, principalmente no Estado. No centro do país, grupos de pesquisa têm a hipnose como técnica complementar em instituições de saúde - afirma o médico Ricardo Feix.
Um deles é o grupo da dor crônica do Hospital das Clínicas de São Paulo. Lá, o psicoterapeuta João Augusto Figueiró utiliza o método para aliviar doenças como enxaquecas, lombalgias e fibromialgias.
É possível reduzir a intensidade da sensação dolorosa - diz Figueiró.
Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o médico hipniatra Osmar Colás é ginecologista e coordena um grupo de vítimas de violência sexual. Ele induz suas pacientes ao transe. Colás afirma que, com a hipnose, 80% dos casos deixam de evoluir para quadros de síndrome do pânico, fobias e vícios como o alcoolismo.
Na mesma universidade, Paulo de Mello lidera o Grupo de Estudos e Pesquisa em Neuropsicanálise. Entre 2000 e 2002, atendeu um paciente de Parkinson que buscou ajuda para melhorar suas atividades.
- Com a hipnose, foi possível reduzir a amplitude do tremor. Sugeri a ele, durante o transe, que o tremor diminuiria - conta Mello.
Experiências como essas da Unifesp e outras tantas espalhadas pelo mundo, principalmente nos Estados Unidos, onde os estudantes de Medicina tem disciplinas voltadas para o tema, permitem que especialistas julguem possível amenizar e até mesmo curar males físicos.
- Não existe milagre no processo hipnótico, mas sim uma indução para que o cérebro busque recursos biológicos e funcionais não usualmente utilizados no cotidiano - diz Mello.
Tire dúvidas
A hipnose pode ser prejudicial à saúde?
Se feita de maneira correta e por profissionais sérios não há riscos.
A pessoa pode ficar presa ao transe e não acordar?
Impossível. Como o transe é o estado entre a vigília e o sono, o paciente pode ser acordado a qualquer momento. Um paciente em regressão não vai para lugar algum, apenas acessa informações relacionadas a eventos de sua história passada. Nem todo mundo, contudo, está psicologicamente pronto para rever, sentir e reeditar partes de sua história. Às vezes é necessário tempo, terapia e vínculo com o profissional para que a hipnose funcione. Sessões malfeitas podem deixar sequelas no paciente, como disfunção erétil, hipertensão e problemas emocionais.
Durante o transe, a pessoa perde a consciência?
Durante a hipnose, a pessoa fica com a atenção focalizada em um único ponto, o que nada tem a ver com a perda de consciência. Entretanto, em níveis mais profundos de transe ocorre um desligamento total do mundo exterior. O paciente pode retornar do transe, lembrando ou não do que aconteceu.
As etapas do processo da hipnose
1° Harmonia - O hipnotizador precisa ter empatia com o paciente.
2° Indução - Conversa metafórica e simbólica para estimular o transe. O paciente começa a sentir o clima do lugar para onde a sua mente o transportou e é capaz de escutar sons e sentir cheiros de onde "está".
3° Absorção - Quando as expectativas do paciente se confirmam e a atenção se torna focalizada, caracterizando o estado de transe. Nessa fase, o superego, responsável pela censura e excesso de racionalidade, é desligado, e o raciocínio indutivo é ativado.
4° Visualizações - Em geral, o corpo, os músculos e a pele relaxam, o coração desacelera, a respiração fica lenta e o indivíduo se mantém imóvel, como se estivesse dormindo. Imagens enviadas pelo inconsciente começam a surgir no campo de visão da pessoa.
5° Amnésia parcial - Há um esquecimento do entorno. Nesse estágio, o paciente está pronto para acessar um foco de trauma.
6° Ressignificação - Aquilo que foi visto e sentido é compreendido, e o profissional ajuda a dar um novo significado para aquela informação.
7° Retorno ao estágio de vigília.
Indicações
:: Problema familiar e conjugal
:: Problemas de sexualidade, como impotência
:: Hipertensão
:: Neurologia (enxaqueca, paralisia, lesões por esforço repetitivo)
:: Preparação para o parto normal ou cirurgias em geral
:: Dor crônica
:: Hábitos indesejáveis, como gagueira e tiques nervosos
:: Dependentes químicos
:: Distúrbios de ansiedade, alimentares e do sono
:: Estresse, depressão, fobias e síndromes pós-traumáticas
:: Doenças psicossomáticas
:: Problemas de pele
:: Quem busca melhorar a performance em concursos, nas artes e nos esportes
Contraindicações
:: Psicóticos e esquizofrênicos, pois já vivem no transe da doença. Podem entrar em um transe desgovernado
:: Epilépticos, já que, durante a hipnose, é necessário que todas as áreas de conexões cerebrais funcionem bem
:: Cardiopatas graves , devido às fortes emoções e oscilações de batimentos cardíacos
:: Pessoas com demências
Saiba mais
O Brasil não tem uma legislação específica sobre o uso da hipnose. Na década de 1960, o ex-presidente Jânio Quadros havia assinado um decreto que proibia o uso da hipnose em espetáculos públicos. Mais de 30 anos depois, Fernando Collor revogou a documento. Desde então, médicos, dentistas e psicólogos são orientados pelos próprios códigos de ética sobre a utilização da hipnose para fins científicos. Psicólogos também estão autorizados à prática.
Como achar um profissional
:: É importante que o hipnólogo esteja registrado em um conselho, que pode ser de odontologia, medicina, fisioterapia e psicologia. Essa informação pode ser conferida em cada um dos órgãos.