
O superendividamento na população idosa brasileira, mais do que uma questão financeira, trata-se de um problema social, jurídico e psicológico que compromete a qualidade de vida de milhões de pessoas acima dos 60 anos.
Com o aumento do custo de vida, aposentadorias defasadas, pressão familiar e práticas abusivas do mercado financeiro, cresce o número de idosos que perdem o controle das finanças e enfrentam dificuldades para custear itens essenciais como alimentação, moradia e medicamentos.
Segundo dados divulgados em dezembro de 2024 pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), do total de 23 milhões de aposentadorias, cerca de 10 milhões possuem empréstimos consignados.
O que significa que uma grande parcela da renda dos aposentados é comprometida apenas com a quitação de dívidas. Pra se ter uma ideia, 70% dos 40,7 milhões de aposentados e pensionistas recebem apenas um salário mínimo, conforme o INSS.
O que é o superendividamento?
Segundo o educador financeiro Diego Angelos, da Dynamis Educação, que trabalha em parceria com o Tecnopuc, o superendividamento se diferencia do endividamento comum por comprometer os custos básicos de sobrevivência.
— Ele ocorre quando a pessoa já não consegue manter as despesas mínimas, como moradia, alimentação e saúde, devido às dívidas acumuladas — explica.
Conforme o especialista, a margem consignável (desconto em folha) para empréstimos é de 35%. Contudo, Angelos relata que muitas pessoas também contratam empréstimos pessoais, o que compromete ainda mais a renda mensal.
Ele destaca ainda que a Lei nº 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento, define juridicamente esse estado e garante ao consumidor o direito à renegociação global das dívidas, preservando o chamado “mínimo existencial”.
Superendividamento na prática
Para entender como o superendividamento se manifesta na prática, imagine o caso de Dona Maria, aposentada de 70 anos, que recebe um benefício mensal de R$ 3 mil.
Com parte da renda já comprometida com dois empréstimos consignados, que consomem cerca de R$ 1 mil, e outras dívidas no cartão de crédito que ultrapassam R$ 1,5 mil por mês.
Isso a deixa com apenas cerca de R$ 500 para arcar com despesas básicas como alimentação e medicamentos.
— Mesmo sem estar inadimplente, Dona Maria vive uma situação de sufoco financeiro permanente, sem margem para imprevistos, o que caracteriza o superendividamento: a incapacidade de manter uma vida digna devido à sobrecarga de dívidas — detalha o especialista.
Perfil do inadimplente no Brasil
De acordo com o Mapa de Inadimplência no Brasil, elaborado pelo Serasa em maio de 2021, o país já registrava mais de 60 milhões de inadimplentes, com mais de 211 milhões de dívidas acumuladas, totalizando R$ 249,6 bilhões em débitos. O valor médio de cada dívida era de R$ 3.937,98, sendo os principais setores credores: bancos/cartões de crédito (29,7%), serviços essenciais como água e luz (22,3%) e varejo (13%).
Quanto ao perfil etário dos inadimplentes, os dados mostram que 16,9% têm mais de 60 anos, o que corresponde a aproximadamente 10 milhões de idosos negativados no Brasil.
Apesar de os idosos não liderarem em números absolutos, chama atenção o crescimento contínuo da inadimplência entre os 60+, impulsionado por empréstimos consignados, crédito fácil e dificuldades de recompor a renda com aposentadorias defasadas.
Trata-se de um grupo particularmente vulnerável — não apenas pela renda limitada, mas também pela exposição a práticas abusivas e ao risco de golpes.

Vulnerabilidade do idoso
Para a psicóloga Denise Milk, a população idosa é mais suscetível ao superendividamento por múltiplas razões.
— Há fatores cognitivos naturais do envelhecimento, como a redução da memória operacional e da capacidade de planejamento. Soma-se a isso uma educação financeira deficiente e um contexto cultural em que muitos idosos sentem-se obrigados a ajudar financeiramente filhos e netos — afirma.
Esse cenário os torna presas fáceis para golpes e ofertas de crédito abusivas. A cartilha (Super)endividamento da Pessoa Idosa, publicada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, alerta que os idosos são frequentemente assediados com propostas de crédito consignado por telefone, e que o abuso financeiro é a terceira forma mais comum de violência contra essa faixa etária, segundo dados do Disque 100.
Sinais de alerta
A psicóloga explica que nem sempre os idosos admitem que estão em apuros. Por isso, é importante que filhos e familiares fiquem atentos a sinais indiretos de superendividamento:
- Contas básicas em atraso (luz, água, telefone)
- Mudança de comportamento (irritabilidade, isolamento, tristeza)
- Repetidas solicitações de “pequenos” empréstimos
- Redução visível no padrão alimentar ou na compra de medicamentos
- Insistência em ajudar financeiramente filhos ou netos mesmo sem condições
- Dificuldade para explicar gastos ou movimentações bancárias
Ao notar qualquer um desses sinais, Denise ressalta que o ideal é abordar o tema com cuidado, escuta e respeito.
— O superendividamento não é falha de caráter nem irresponsabilidade, mas o reflexo de um contexto social complexo, que exige sensibilidade e ação conjunta — reforça.
Causas do problema
Entre os principais fatores estão:
- A perda do poder de compra devido à inflação
- Aposentadorias que não acompanham os custos básicos
- Pressão familiar para obtenção de empréstimos
- Falta de educação financeira e planejamento
- Exposição a práticas comerciais abusivas
- Golpes e fraudes direcionadas à população idosa
— Infelizmente, muitos bancos ainda aproveitam a hipervulnerabilidade do idoso para oferecer empréstimos com taxas abusivas. Em alguns casos, o Custo Efetivo Total (CET) ultrapassa os 1.000% ao ano — denuncia Angelos.
Impacto psicológico
O superendividamento afeta mais do que o bolso. Denise explica que os efeitos emocionais são severos:
— Muitos idosos vivenciam culpa, vergonha, ansiedade e depressão. A sensação de fracasso pessoal é comum e pode gerar isolamento social.
A perda da autonomia financeira, que está fortemente associada à dignidade na velhice, é um golpe duro para essa geração.
O que diz a lei?
De acordo com o advogado previdenciário Rodrigo da Veiga Lima, a legislação tem avançado para proteger os idosos.
— A Lei 14.181/2021 permite ao superendividado entrar com uma ação judicial para renegociar suas dívidas de forma global. Além disso, o Estatuto do Idoso garante proteção contra práticas abusivas, como assédio para contratação de crédito — explica.
Quando há contratação de empréstimos sem plena compreensão por parte do idoso, a Justiça pode anular os contratos com base no vício de consentimento.
— Há jurisprudência consolidada que reconhece a hipervulnerabilidade da pessoa idosa — destaca o advogado.
Como sair do superendividamento?
Segundo o educador financeiro Diego Angelos, os primeiros passos são:
- Buscar ajuda gratuita em órgãos como Procons, Defensorias Públicas e CRAS
- Fazer um levantamento completo das dívidas
- Renegociar com os credores, buscando inclusive portabilidade de empréstimos com taxas menores
- Organizar o orçamento com papel e caneta, identificando onde estão os maiores gargalos — geralmente, alimentação e medicamentos
- Evitar novos parcelamentos e aprender a dizer "não", inclusive para familiares
A cartilha do governo também recomenda evitar o uso do cartão de crédito, eliminar despesas não essenciais, e sempre verificar o custo efetivo total (CET) de qualquer operação financeira.
Apoio é essencial
Para Denise, embora o primeiro passo para sair do superendividamento seja reconhecer a situação, nenhum idoso deve enfrentar isso sozinho. O caminho para reequilibrar as finanças exige, além de orientação técnica, apoio afetivo e prático de pessoas de confiança.
— Os idosos, muitas vezes, não têm mais a agilidade mental ou emocional para lidar com renegociações, contratos e cálculos. A presença de um familiar ou amigo de confiança é fundamental, não para controlar, mas para caminhar junto — salienta a psicóloga.
Quem pode ajudar?
Idealmente, essa pessoa de apoio deve ser alguém que o idoso confie e que saiba ouvir sem julgamento — um filho, neto, cuidador ou até um vizinho próximo. O importante é que haja respeito à autonomia do idoso, ainda que ele precise de auxílio para tomar decisões com mais segurança.
Especialistas recomendam:
- Sentar junto com o idoso para organizar o orçamento, anotando receitas e despesas
- Revisar contratos e extratos bancários para entender onde a renda está sendo consumida
- Acompanhar renegociações de dívidas em bancos, Procons ou Defensorias Públicas
- Proteger o idoso de abordagens abusivas, especialmente por telefone ou redes sociais
- Evitar assumir a gestão total do dinheiro, a menos que haja necessidade legal (como em casos de curatela parcial)
- E, acima de tudo, escutar com empatia, validando a dor emocional que essa situação pode causar
E quando há sofrimento emocional?
— Buscar apoio psicológico é essencial — reforça Denise.
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços universitários ou profissionais particulares podem ajudar. A família também tem um papel fundamental.
— É preciso escutar sem julgamento e caminhar junto, respeitando a autonomia do idoso. A interdição só deve ser considerada em casos extremos, como demência ou transtornos mentais graves — finaliza.
Informação é o melhor antídoto
Combater o superendividamento na terceira idade exige uma rede de apoio multidisciplinar com políticas públicas eficazes, instituições financeiras mais responsáveis, famílias presentes e, sobretudo, mais educação financeira.
— O conhecimento é a principal arma de defesa. A legislação está aí para proteger, mas é preciso divulgar os direitos e reforçar a autonomia da pessoa idosa, antes que o peso das dívidas comprometa saúde, dignidade e paz — conclui Angelos.
* Produção: Leonardo Martins
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