
Lançada pela Netflix na quarta-feira (29), Os Donos do Jogo (2025) rapidamente se tornou a série mais vista na plataforma de streaming. A produção retrata de forma ficcional a guerra dos bicheiros no Rio. É a "máfia tropical", como definiu, em entrevista da qual GZH participou, um de seus criadores, Heitor Dhalia, diretor dos filmes O Cheiro do Ralo (2006) e Serra Pelada (2013) e de episódios dos seriados Arcanjo Renegado e DNA do Crime.
A trama e os personagens de Os Donos do Jogo guardam algumas semelhanças com histórias e figuras reais desse universo clandestino. Como visto na série documental Vale o Escrito: A Guerra do Jogo do Bicho (2023), o jogo do bicho no Rio faz lembrar os mafiosos de Nova York: divide-se em famílias que usam da corrupção e da violência para conquistarem dinheiro e poder.
As contravenções, os crimes e o derramamento de sangue convivem com a alegria, a sensualidade e as tradições do Carnaval. Através das escolas de samba, os bicheiros podem ostentar sua realeza, exercer sua vaidade e também se legitimarem como parte da elite cultural e econômica carioca.

É um mundo machista. Se na vida real as gêmeas Shanna e Tamara não podiam ser as herdeiras de fato do império construído pelo avô, Miro Garcia, e pelo pai, Maninho Garcia, na ficção as irmãs Suzana (encarnada por Giullia Buscacio) e Mirna (Mel Maia) encaram o mesmo obstáculo para ascender na família do já debilitado Jorge Guerra (Roberto Pirillo). A primeira resolveu jogar o jogo, se casando com Búfalo, um lutador de MMA interpretado pelo rapper Xamã que assume os negócios com os pontos do bicho e das máquinas caça-níqueis. A segunda quer trilhar seu próprio caminho sem depender de um homem.
O fio condutor é Profeta (André Lamoglia), filho de Nélio (Adriano Garib) e irmão de Nelinho (Pedro Lamin) e Esqueleto (Ruan Aguiar). Ambicioso, ele deixa a cidade de Campos de Goytacazes para tentar ascender no Rio. Quer sentar à mesa da Cúpula junto aos líderes da velha guarda, como Galego Fernandez (Chico Diaz), que é casado com Leila (Juliana Paes).

Todos esses personagens vão se envolver em uma ciranda de paixões, traições, alianças, ameaças, segredos e reviravoltas. Há muitos clichês do gênero, e vale dizer que não existem santinhos: talvez o espectador sinta falta de uma bússola moral, como, por exemplo, a doutora Melfi na série sobre mafiosos Família Soprano (1999-2007).
Faltam também carisma e expressividade a André Lamoglia no papel principal. Em compensação, Chico Diaz enche a tela cada vez que surge na pele de Galego, às vezes equilibrando na mesma cena senso de humor e espírito vingativo.
Outro ponto positivo são os ditos populares que recheiam os diálogos, como "O mal do urubu é achar que todo boi tá morto" ou "Respeito é bom e mantém os dentes". Em entrevista à coluna, o diretor Heitor Dhalia disse que frases assim são frutos de um "mix" do trabalho de pesquisa dos roteiristas — muitos deles, cariocas — e da participação dos atores, como Chico Diaz e Stepan Nercessian, ambos com muita vivência e muita inventividade. Mas como se traduz esse carioquês para o mercado estrangeiro, onde as produções brasileiras da Netflix vêm tendo uma boa receptividade?
— Eu não sei te responder. Essa parte da dublagem e da legendagem tem um departamento inteiro, mas com o qual a gente não interage, só vemos quando está pronto. Mas é uma boa pergunta. Tenho curiosidade de saber — afirmou Dhalia. — Eu vi o trailer em francês. Mesmo que você tire as expressões regionais, o que importa é que os temas universais estão totalmente lá: Família. Poder. Dinheiro. Disputa. Tem uma outra coisa também, que são os códigos de gênero. Quando você trabalha em um gênero, você tem códigos universais de linguagem cinematográfica que são percebidos em todos os lugares. Isso facilita a comunicação.
Entrevistas com o elenco de "Os Donos do Jogo"

No dia 22 de outubro, a convite da Netflix, participei de uma rodada de entrevistas por vídeo com seis atores de Os Donos de Jogo: André Lamoglia, Xamã, Chico Diaz, Juliana Paes, Giullia Buscacio e Mel Maia. Confira os principais trechos das conversas:
Chico Diaz e Juliana Paes: ambiguidade e mistérios

Galego é um tipo traiçoeiro. Ele tanto pode seduzir o espectador — e os outros personagens — com sua lábia e seu bom humor quanto se mostrar um sujeito vingativo e violento, mesmo que não sujando as próprias mãos. Gostaria que você falasse sobre a construção do Galego e o desafio de encontrar esse equilíbrio delicado entre ser um personagem que é perverso, mas também tem um lado carismático.
Chico Diaz: Te agradeço a pergunta. Não acho o Galego traiçoeiro, acho que é um pai de família, um empresário bem sucedido, com seus valores singulares, peculiares, claro, respondendo ao contexto histórico que lhe é oferecido. É uma realidade. É um contexto no qual o instinto de sobrevivência se impõe. Eu acho que ele é fruto disso tudo, ele é fruto do meio. Eu estou brincando um pouco, mas é um personagem pelo qual qualquer intérprete agradeceria, pelos componentes de poder, de ambição, de manutenção desse poder familiar, de convívio com outros poderosos. Tem muitas camadas oferecidas: a questão humana, a questão social, a questão política, a questão econômica, a questão de como administrar e harmonizar com os interesses de todos os outros chefes do bicho. É um personagem sensacional, porque ele vai de zero a cem em dois segundos, assim como você bem falou. Claro que existe um recorte das traições, da violência, da mão forte. Mas eu também tentei humanizá-lo. E através da humanização, do carisma, do humor, ele se aproxima de uma melhor forma do espectador. Então, eu espero ter chegado a essa dubiedade que nos compõe como seres humanos.
A Leila faz um jogo duplo, né? Na superfície, posa como uma espécie de esposa troféu do Galego, mas às escondidas opera para atingir os seus objetivos, que podem ir contra os interesses do marido. E ela também guarda um segredo, que é revelado no terceiro episódio. Você pode falar sobre as características da sua personagem?
Juliana Paes: É muito legal você estar falando isso, porque, quando a gente começa a compor um personagem... Cada ator tem seus métodos, né? Mas eu gosto de ter algumas palavras de ordem. E a palavra que eu botei maior no meu quadro mental para a Leila é mistério. Que é isso que você está falando, é esse jogo duplo. Ela precisa manter esse mistério para o marido, ela mantém mistério para a família, ela é misteriosa nas outras relações que ela estabelece dentro da trama. Ela está sempre com algum tipo de máscara em algum lugar. E isso é gostoso de fazer, é divertido de fazer, e acho que dá conta de explicar uma mulher que sobrevive nesse universo. Que é opressor porque é machista, porque é patriarcal. Como uma mulher que tem tantos objetivos e desejos sobrevive nesse universo? Ela precisa de muitas máscaras e de muito mistério mesmo. Essas são as ferramentas da Leila.
Giullia Buscacio e Mel Maia: poder e sensualidade

O universo do jogo do bicho no Rio é uma espécie de equivalente brasileiro ao do mundo da máfia de Nova York. Nos filmes e nas séries sobre mafiosos, as mulheres geralmente têm papéis subalternos, são escanteadas ou preferem viver na ignorância ou na hipocrisia em relação ao que os maridos realmente fazem. Na série Os Donos do Jogo, as duas personagens que vocês interpretam não seguem esse estereótipo. A Suzana está sempre por dentro dos negócios do Búfalo, dá palpites, levanta suspeitas. A Mirna está sempre lembrando que é herdeira, tem ambições, faz acontecer. Vocês podem falar mais sobre os papéis femininos em um universo tão masculino e machista?
Giullia Buscacio: Eu acho que a Suzana e a Mirna têm duas maneiras de lidar com essa ocupação de espaço. A Suzana escolheu jogar o jogo de fato. Se ela precisa ter um companheiro para poder estar nesse tabuleiro e jogar, ela vai fazer isso. Porque, realmente, se você não joga as regras do jogo, você não está dentro, né? Você está do lado de fora, e não é isso o que a Suzana quer. Ela entendeu isso muito rapidamente, ela primeiro desbloqueou isso, porque eu acredito que, assim como a Mirna, existe um desejo interno da Suzana de também ser a pessoa independente, que não precisava de homem. Mas ela entendeu, com a maturidade, que ela não conseguiria, que ela não chegaria nem na porta. Acho a Suzana muito articulada, e ela me ensinou muito também. A Suzana me mostrou que você não precisa chegar dando o pé na porta. Você pode, aos poucos, usar a sua inteligência. Acho que as mulheres, nesse game, vão mostrar que a inteligência também é uma grande ferramenta.
Mel Maia: Na verdade, é a maior ferramenta, e eu acho que o jogo do bicho não ia andar sem as nossas mentes pensantes e inteligentes. A Mirna joga um jogo completamente diferente do da Suzana, ela quer mostrar esse empoderamento, ela quer chegar lá sem precisar de um homem. No fundo, ela sabe que isso é difícil, quase impossível, mas ela quer ver até onde consegue ir. Ela tem muita coragem de ocupar esse espaço dela com firmeza, porque, como você falou, é um mundo muito machista, não foi feito, de fato, para ouvi-la.
Um aspecto interessante de Os Donos do Jogo é que existe, sim, erotismo, jogos de sedução, cenas de sexo, mas não há uma exploração do corpo feminino, ou pelo menos não só do corpo feminino. É mais um sinal de que as mulheres nesta série não são estereotipadas?
Giullia Buscacio: É legal você estar apontando isso, porque eu acredito que a sensualidade, a sexualidade, ela não necessariamente está nos corpos, né? Você consegue usar desse artifício, que é uma grande ferramenta do jogo, numa conversa, num olhar, num toque. Eu acho que a gente traz muito isso para o jogo. Acho que também tem uma sensibilidade muito grande da direção. Quando mostramos a intimidade dos personagens, há sempre uma história por trás, as cenas não fazem uma exploração do corpo de graça.
Mel Maia: Só por ser brasileiro e carioca, a gente já tem sensualidade de sobra. Acho que a série mostra que a gente usa esse jeito sexy, o borogodó do carioca, muito mais nas conversas, nos jogos de poder.
André Lamoglia e Xamã: o caminho do crime

Todos os personagens de Os Donos do Jogo estão envolvidos de alguma forma com o crime, a corrupção, a violência, a traição etc. Você acha que o teu personagem, o Profeta, por ser o condutor da trama, chega a ser uma bússola moral para o público? Chega a ser o bandido bonzinho?
André Lamoglia: Eu acho que não existe bandido bonzinho. A gente retrata o universo da contravenção, o universo do crime. A gente se apropriou desse universo para trazer para a ficção, para o entretenimento, para as pessoas em casa verem, se emocionarem, terem raiva e tudo. Não fizemos no intuito de ensinar nada a ninguém. O público acompanha a jornada do Profeta, que é sair de Campos, chegar no Rio de Janeiro e querer entrar na Cúpula também, junto com o resto dos veteranos. E o caminho dele é um caminho do crime.

Xamã, no Festival de Gramado você ganhou o Kikito de melhor ator coadjuvante por encarnar o traficante de drogas Sapinho no filme Cinco Tipos de Medo. Em entrevistas, você falou sobre como esse tipo de personagem é distante do tipo de rap que você costuma cantar, que evita as narrativas sobre crime ou violência policial. Aliás, no programa Conversa com Bial você disse que "nada é mais revolucionário do que falar de amor". Em Os Donos do Jogo, por coincidência, você interpreta outro bandido, e de novo com apelido de animal, o Búfalo. Gostaria que você falasse sobre como é encarnar um personagem tão diferente da tua persona como cantor.
Xamã: Ah, cara, eu acho que isso até, de uma certa forma, me ajuda um pouco. Esses personagens me descaracterizaram, tiram a imagem do Xamã do Poesia Acústica, das love songs. O grande desafio de quem canta e atua é fazer, quando tiver um papel, o espectador esquecer tudo que aprendeu sobre esse artista enquanto cantor, enquanto cantora. Esse personagem, o Búfalo, ele resolve tudo com as mãos mesmo, né? É uma coisa muito forte, totalmente diferente do Xamã, que é coração e pão doce. As cenas são bem agressivas também verbalmente. O André é gente fina demais. Como é que eu vou xingar esse cara? Então, a gente criou um ambiente de respeito e amizade para depois descascar o tomate.
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