
É uma grande lástima que o aniversário de 25 anos da estreia de A Hora do Show (Bamboozled, 2000) nos cinemas, nesta segunda-feira (6), não possa ser comemorado do jeito apropriado: o filme escrito e dirigido por Spike Lee está indisponível no streaming.
O título original significa trapaceado. A palavra bamboozled teria vindo de discursos do líder negro Malcolm X, assassinado em 1965 e retratado por Lee na cinebiografia homônima estrelada por Denzel Washington e lançada em 1992.
Em A Hora do Show, o cineasta atacou impiedosamente a maneira como Hollywood pinta o negro no seu país. Interpretado pelo comediante Damon Wayans, o personagem principal se chama Pierre Delacroix. Educado em Harvard, ele é o único roteirista negro de uma grande emissora de TV.

Seu chefe (papel de Michael Rapaport), um branco que se diz mais negro do que os negros, dá um ultimato: ou Pierre cria um seriado black de sucesso, ou vai para a rua. O escritor tem uma ideia mirabolante: recuperar os shows de menestréis do século 19, em que artistas brancos pintavam a cara de preto, no chamado blackface (leia mais logo abaixo), e reforçavam o estereótipo do escravo burro, preguiçoso e bom cantor.
Ao lado de sua assistente (vivida por Jada Pinkett-Smith), Pierre recruta um sapateador sem-teto (o dançarino Savion Glover) e seu parceiro cômico (Tommy Davidson). Ambos são negros que vão se pintar de preto.
O primeiro é batizado de Mantan, em alusão ao ator Mantan Moreland (1902-1973), famoso por encarnar criados e mordomos em comédias dos anos 1930 e 1940. O segundo ganha a alcunha de Sleep'n'Eat (Come-e-Dorme).

A Hora do Show é uma sátira feroz, lançada quando, até então, em 72 edições, apenas seis vezes a Academia de Hollywood havia premiado com o Oscar atores e atrizes negros.
Ninguém escapa, nem seu próprio diretor, já naquela época o mais influente dos cineastas negros estadunidenses, depois de obras como Faça a Coisa Certa (1990), Febre da Selva (1991) e o documentário 4 Little Girls (1997). O produtor encarnado por Rapaport diz que "o público negro não quer saber desses filmes politizados de Spike Lee".
Há também um amargo autoquestionamento. A aceitação pela mídia e pela sociedade, ambas majoritariamente brancas, requer assimilação? Onde termina a piada e começa o preconceito?

Para construir o roteiro de A Hora do Show, Spike Lee trabalhou em cima do estudo de Donald Boogle sobre cinco estereótipos negros, Toms, Coons, Mulattoes, Mammies and Bucks: An Interpretative History of Blacks in American Films.
Os Toms equivalem à figura de Tomás, de A Cabana do Pai Tomás (1852), romance de Harriet Beecher Stowe. Embora tenha sido um livro escrito com propósitos abolicionistas — no qual a família do personagem principal inclusive foge para a Libéria —, o personagem Uncle Tom é tido como um negro servil, aquele que sempre diz "sim, senhor".
Coons são os bobões de olhos esbugalhados, ignorantes e preguiçosos. Stepin Fetchit (1902-1985) interpretou vários tipos assim.
Mulattoes são os mulatos simpáticos mas fadados a um triste fim por tentar ocultar suas origens.
Mammies são as criadas das famílias sulistas, geralmente gordinhas, como a personagem vivida pela oscarizada Hattie McDaniel em ...E o Vento Levou (1939).

Bucks são os brutais e hipersexualizados negros encarnados por brancos no filme O Nascimento de uma Nação (1915), a apologia de D.W. Griffith à Ku Klux Klan, a organização racista que viraria tema de Spike Lee em Infiltrado na Klan (2018).
O espantoso clipe final de A Hora do Show é uma colagem de imagens de filmes, desenhos animados, programas de TV e comerciais nos quais aparecem todos esses cinco estereótipos. Muitos desses personagens são vistos pronunciando a servilidade imposta por Hollywood: "Yes, mam (sim, madame). Yes, mam. Yes, mam".
Duas respostas ao blackface

Nos primórdios do entretenimento estadunidense, houve a imposição de um estereótipo, por meio da chamada blackface: até atores negros pintavam o rosto de preto, acentuavam o vermelho dos lábios e contornavam os olhos com branco. Artistas afro-americanos tinham de se contentar em representar papéis estereotipados, como os coons ou os bucks, ou personagens serviçais, como a Mammy de Hattie McDaniel no clássico ...E o Vento Levou (1939).
Na década de 1970, houve a reinvenção do estereótipo, por meio da Blaxploitation. O movimento nasceu da luta pelos direitos civis com a fome por novos mercados. Os filmes eram dirigidos e estrelados por negros, com tramas calcadas em violência e sexo, nessa ordem. Davam vez ao gueto, mas reforçavam alguns preconceitos: "brutais, vulgares, hipersexualizados".

Sweet Sweetback's Baadasssss Song (1971) abriu alas ao gênero, que teve como estrelas Pam Grier (a sexy vingadora de Coffy e Foxy Brown) e Richard Roundtree — o policial Shaft rendeu três filmes e um seriado, além do Oscar de melhor canção original para Theme of Shaft, de Isaac Hayes. "Ele tocava e cantava com óculos escuros e uma camiseta feita de correntes quebradas, em clara alusão à ruptura com a servidão negra", observa o jornalista Luís Felipe dos Santos, coordenador de Inteligência Digital em GZH.
O sucesso gerou subgêneros (vide Blácula) e atraiu grandes estúdios. A Paramount lançou em 1975 o controverso Mandingo, inspiração para o Django Livre (2012) de Quentin Tarantino, que celebrara a Blaxploitation em Jackie Brown (1997).

Mais tarde, veio a mercantilização do estereótipo. Comediantes estadunidenses negros decidiram ganhar dinheiro explorando o preconceito na figura da Black Fat Woman. Desde os anos 1990, se travestem de obesas para destilar piadas fisiológicas.
Eddie Murphy deu a largada, com O Professor Aloprado 1 e O Professor Aloprado 2, ambos com bilheteria superior a US$ 120 milhões nos EUA. Martin Lawrence tentou copiar com a franquia Vovó... Zona. O diretor, roteirista e ator Tyler Perry virou fenômeno com a cinesssérie Madea, que nasceu no mercado de DVDs e depois pulou para a tela grande.

Já os irmãos Marlon Wayans e Shawn Wayans reverteram o blackface: em As Branquelas, interpretam dois policiais negros que se disfarçam de loiras. Fúteis e burras, como manda o estereótipo.
Através do humor, o filme expõe os absurdos do racismo e da obsessão com a branquitude, mostrando como as protagonistas, mesmo disfarçadas, são constantemente confrontadas com preconceitos e microagressões.
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