
Dá para resolver muito rapidamente o mistério encarado pela personagem da atriz Keira Knightley em A Mulher da Cabine 10 (The Woman in Cabin 10, 2025), segundo filme mais visto na Netflix nesta segunda-feira (13). Aliás, a solução do enigma está, literalmente, na cara.
ATENÇÃO: haverá SPOILERS VIOLENTOS neste texto.
A Mulher da Cabine 10 é uma adaptação do romance homônimo publicado em 2016 pela escritora Ruth Ware. A trama alinha-se à de livros como A Garota no Trem (2015), de Paula Hawkins, e A Mulher na Janela (2018), de A.J. Finn, ambos também já transformados em filmes.
Suas protagonistas testemunham um crime, mas são desacreditadas — às vezes por causa de seus problemas de saúde mental e/ou alcoolismo — e precisam investigar o caso por conta própria. Acabam enfrentado o gaslighting, a manipulação psicológica baseada na distorção e na negação dos fatos, de modo a fazer a vítima duvidar da sua memória, da sua sanidade e da sua capacidade de distinguir a realidade da ilusão.
O filme A Mulher na Cabine 10 foi dirigido por Simon Stone, o mesmo de A Escavação (2021). Indicada ao Oscar de melhor atriz por Orgulho e Preconceito (2005) e de coadjuvante por O Jogo da Imitação (2014), Keira Knightley interpreta a jornalista investigativa Laura Blacklock, que trabalha no Guardian, em Londres. Ela ainda está se recuperando de um episódio traumático — o assassinato de uma fonte — quando é convidada para um cruzeiro até a Noruega a bordo de um iate luxuoso.
O Aurora Borealis é propriedade do casal Anne Lyngstad (papel de Lisa Loven Kongsli), uma herdeira da indústria naval norueguesa que tem leucemia em estágio 4, e Richard Bullmer (Guy Pearce). O objetivo do passeio marítimo é arrecadar fundos para o lançamento de uma fundação de pesquisas sobre câncer.

No iate, Laura, para evitar cruzar no corredor com seu ex-namorado, o fotógrafo Ben (David Ajala), resolve entrar na cabine vizinha — a de número 10. Lá, encontra uma passageira que ela não reconhece. Mais tarde, já na sua cama, a protagonista ouve barulhos de uma briga, um grito e o som de algo ou alguém caindo ou sendo jogado no mar. Uma mancha de sangue não deixa dúvidas para Laura — nem para o espectador: a mulher da cabine 10 foi empurrada da embarcação.
Laura alerta a tripulação, mas todos dizem que a cabine 10 estava desocupada, e nenhum dos outros convidados parece lembrar da mulher que a repórter descreve. Eis o suposto quebra-cabeças do filme, que, claro, coloca a vida da própria Laura em risco.
Reforço o ALERTA SOBRE SPOILERS.

Vendido como uma espécie de homenagem às histórias de Agatha Christie (1890-1976), A Mulher na Cabine 10 carece justamente daquilo que caracterizava os romances da Rainha do Crime: mistério.
Nada contra filmes que se propõem a serem somente um quebra-cabeças policial. Mas A Mulher da Cabine 10 parece ter apenas 30 peças! Qualquer espectador minimamente acostumado a tramas do gênero consegue acertar nos primeiros 20 minutos dos 95 de duração as identidades da vítima e da pessoa culpada. Até porque o motivo é dado logo no início, em uma das mudanças para pior do filme em relação ao livro.
A adaptação cinematográfica encena um encontro secreto que não existe no livro: Anne, em uma conversa a sós, revela a Laura que alterou seu testamento. Agora, o dinheiro vai todo para pesquisas médicas — o marido não herdará nada.
E quem prestar atenção no rosto da misteriosa passageira da cabine 10, que é interpretada por Gitte Witt, vai reparar na sua semelhança com o de Anne. A única diferença é que a primeira tem uma cabeleira loura, e a segunda perdeu os cabelos por causa da quimioterapia.
Ou seja: apesar da tentativa de filme de propor uma charada ao público, é fácil demais "descobrir": que Anne é quem foi jogada ao mar; que Richard Bullmer é o assassino; e que ele contratou a personagem de Gitte Witt, chamada Carrie, para trocar de lugar com a esposa e refazer o testamento.

O quebra-cabeças poderia ser mais instigante se, em primeiro lugar, o filme tivesse sido mais fiel ao livro no retrato de Laura. A personagem de Keira Knightley é nitidamente a mocinha lutando contra todos; na história contada por Ruth Ware, a jornalista é uma narradora bem menos confiável, porque desenvolveu o hábito de beber muito para lidar com seu transtorno de estresse pós-traumático.
Em entrevistas, o diretor Simone Stone deu uma justificativa. Citou filmes dos anos 1970, como A Conversação (1974), A Trama (1974) e Três Dias do Condor (1975), protagonizados, respectivamente, por Gene Hackman, Warren Beatty e Robert Redford.
— Eu me lembrava de todos esses filmes da era pós-Watergate sobre uma pessoa comum que se vê no meio de uma conspiração e diz: "Há algo acontecendo aqui que é maior do que eu, e eu preciso descobrir o que é". Normalmente, quando se trata de uma mulher, você questiona a saúde mental dela. Aqui, eu coloco outros personagens tentando fazer isso, mas nunca quis que ela começasse a duvidar de si mesma. Se houvesse o mesmo número de filmes e livros sobre homens questionando sua sanidade e se envolvendo com pílulas, drogas, álcool e problemas de saúde mental, eu me sentiria bem com isso (mostrar Laura como uma narradora não confiável). Mas o fato de sempre fazermos isso com personagens femininas me parece uma conspiração contra a integridade das mulheres.

Talvez seja uma justificativa válida, mas Stone também poderia ter incrementado o mistério policial de A Mulher da Cabine 10 se tivesse desenvolvido melhor os personagens coadjuvantes — praticamente todos são subaproveitados. Entre eles, estão a influenciadora digital Grace Phillips (Kaya Scodelario), o veterano astro do rock Danny Tyler (Paul Kaye), o médico Robert Mehta (Art Malik) e a esnobe curadora Heidi Heatherley (Hannah Waddingham), que veio acompanhada por seu marido, Thomas (David Morrissey). Há ainda os tripulantes, como o capitão Addis (John Macmillan), e o estafe de Anne e Richard, como a assessora Sigrid (Amanda Collin).
O mínimo que se espera de um filme com pretensões de emular Agatha Christie é que haja vários suspeitos e reviravoltas surpreendentes, como faz o cineasta Rian Johnson em Entre Facas e Segredos (2019) e Glass Onion: Um Mistério Knives Out (2022). E nesses títulos Johnson consegue equilibrar os elementos detetivescos com o comentário sociopolítico, ao contrário de A Mulher da Cabine 10, que naufraga como passatempo policial e dá só umas braçadinhas na onda das sátiras sobre a elite econômica e social.
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