
O Agente Secreto (2025) são muitos filmes em um só. Todos se acomodam e se misturam nas duas horas e 40 minutos de duração do título escolhido pelo Brasil para tentar repetir em 2026 a conquista histórica de Ainda Estou Aqui (2024) no Oscar internacional.
Escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho e protagonizado por Wagner Moura, o longa-metragem terá novas sessões de pré-estreia neste sábado (1º) e entra em cartaz nos cinemas no dia 6 de novembro.
Antes, na próxima segunda-feira (3), haverá duas exibições com entrada franca na Sala Paulo Amorim, às 18h30min, e na Cinemateca Capitólio, às 19h, dentro da programação do 13º Festival de Roteiro Audiovisual de Porto Alegre, o Frapa. A retirada de entradas é por ordem de chegada, e o cineasta pernambucano estará presente nos dois lugares: Kleber vai apresentar o início da sessão na Capitólio e, depois, participará de debate na Paulo Amorim.
As muitas armas de "O Agente Secreto"

O Agente Secreto é um filme sobre memória e esquecimento, sobre opressão e resistência, sobre como acontecimentos do período da ditadura militar no Brasil (1964-1985) reverberam ainda hoje no país — quantas histórias foram mal contadas? Quantas biografias merecem ser reparadas?
É uma declaração de amor a Recife, a cidade do diretor e roteirista Kleber Mendonça Filho, com uma reconstituição de época (a do final dos anos 1970) primorosa comandada pelo designer de produção Thales Junqueira e pela figurinista Rita Azevedo, e uma declaração de amor ao cinema. Crítico no começo da carreira, o cineasta homenageia os clássicos Tubarão (1975) e A Profecia (1976) e celebra o ambiente em si, desde as filas na rua e os letreiros na marquise até a cabine do projecionista, que opera a experiência mágica e coletiva da sala escura — onde a plateia pode viver seu próprio romance, ou algo mais picante.
É um drama familiar sobre a relação de um pai com o filho, mas também é um thriller político sobre o papel da polícia, do empresariado e da imprensa durante os governos dos generais.
É um filme que valoriza a cultura nordestina — do sotaque ao frevo — ao mesmo tempo em que critica o sentimento de superioridade das regiões Sudeste e Sul.
É um filme que dá voz aos marginalizados ao mesmo tempo em que denuncia a indiferença da elite, seus privilégios e sua ganância.
É uma obra que espelha o típico sincretismo religioso do Nordeste na sua fusão de gêneros — o drama histórico, o suspense policial, até o terror sobrenatural — e no ecumenismo da trilha sonora: vai de Não Há Mais Tempo (Angela Maria) a If You Leave me Now (Chicago), de Love to Love You Baby (Donna Summer) a Eu Não Sou Cachorro Não (Waldick Soriano), de A Briga do Cachorro com a Onça (Banda de Pífanos de Caruaru) a Guerra e Pace, Pollo e Brace (Ennio Morricone).
É também a mistura de um realismo que não poupa sangue com um surrealismo que tem efeito cômico.
Em maior ou menor grau, todos esses temas e todas essas características aparecem nos cinco longas-metragens anteriores de Kleber: Crítico (2008), O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016), Bacurau (2019, com Juliano Dornelles) e Retratos Fantasmas (2023). Há rostos repetidos também: Carlos Francisco, Udo Kier, Wilson Rabelo, Rubens Santos, Thomás Aquino, Buda Lira, Tânia Maria, Suzy Lopes... Mas o principal nome do elenco é novidade na carreira do diretor pernambucano de 56 anos: o ator baiano Wagner Moura, 49.
Os trunfos do filme na corrida pelo Oscar

Bem conhecido em Hollywood, onde disputou o Globo de Ouro pelo papel de Pablo Escobar no seriado Narcos, em 2016, e estrelou filmes como Guerra Civil (2024) e minisséries como Ladrões de Drogas (2024), o ator Wagner Moura é o garoto-propaganda de uma campanha que começou quatro meses antes de o Brasil, em setembro, eleger O Agente Secreto para representar o país na briga por uma indicação ao Oscar 2026 de melhor filme internacional.
A lista com os 15 semifinalistas será divulgada em 16 de dezembro, e a Academia de Hollywood anuncia os cinco indicados no dia 22 de janeiro. A cerimônia de premiação está marcada para 15 de março, no Teatro Dolby, em Los Angeles.
A vaga no Oscar internacional é dada como certa, mas o diretor Kleber Mendonça Filho e sua equipe podem sonhar mais alto do que Ainda Estou Aqui (2024), que venceu a categoria e competiu também pelos troféus de melhor filme e melhor atriz (Fernanda Torres). Podem até quebrar o recorde de indicações para uma produção brasileira, estabelecido por Cidade de Deus (2022), concorrente em direção (Fernando Meirelles), roteiro adaptado (Bráulio Mantovani, a partir do romance de Paulo Lins), fotografia (Cesar Charlone) e montagem (Daniel Rezende).
A julgar pelas apostas dos jornalistas estadunidenses Clayton Davis, na Variety, e Scott Feinberg, no Hollywood Reporter, O Agente Secreto tem potencial para ser candidato a seis prêmios no Oscar 2026: melhor filme, direção, ator, atriz coadjuvante (Tânia Maria), roteiro original e longa internacional.

O zunzunzum sobre a presença no Oscar nasceu no Festival de Cannes, em maio, quando, contrariando uma regra da competição francesa, o júri presidido pela atriz Juliette Binoche concedeu ao filme brasileiro dois dos prêmios principais: o de melhor direção, para Kleber Mendonça Filho, e o de melhor ator, para Wagner Moura. Essa exceção ampliou a visibilidade que o título já tinha, tanto por causa de Wagner quanto do próprio Kleber.
Assim como o nome do ator, o do diretor já era familiar ao mercado estrangeiro. Com Aquarius (2016), que também competira pela Palma de Ouro em Cannes, o cineasta pernambucano apareceu na quarta colocação da lista de 10 melhores filmes do ano elaborada pela revista francesa Cahiers du Cinèma e ganhou o prêmio Directors to Watch no Festival de Palm Springs, na Califórnia. O título também recebeu indicação ao troféu de longas estrangeiros do Independent Spirit Awards, o principal prêmio do cinema independente nos EUA.
Codirigido por Juliano Dornelles, Bacurau (2019) dividiu o Prêmio do Júri em Cannes com Os Miseráveis (2019), também concorreu no Independent Spirit Awards e foi eleito o melhor filme internacional pela Associação dos Críticos de Nova York.
Em seguida ao duplo triunfo de O Agente Secreto em Cannes, seus produtores assinaram um contrato de distribuição nos EUA com a Neon, a mesma empresa que trabalhou nas campanhas vitoriosas de Parasita (2019) e de Anora (2024), ambos ganhadores da Palma de Ouro e, depois, do Oscar de melhor filme.
Aliás, em maio passado a Neon conseguiu sua sexta Palma de Ouro consecutiva. A conquista de Foi Apenas um Acidente (2025) sucedeu as de Parasita, Titane (2021), Triângulo da Tristeza (2022), Anatomia de uma Queda (2023) e Anora (em 2020, não houve festival, por causa da pandemia de covid-19). A companhia também tem no catálogo títulos como A Pior Pessoa do Mundo (2021), Dias Perfeitos (2023) e A Semente do Fruto Sagrado (2024), todos indicados ao Oscar internacional.
Qual é a trama de "O Agente Secreto"?

A trama de O Agente Secreto se passa em 1977, como evidencia a exibição, logo na abertura, de uma coleção de fotos de ícones culturais daqueles tempos — Os Trapalhões, Chacrinha, Clara Nunes, a novela A Escrava Isaura (1976), o filme Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977). O Brasil estava sob a ditadura militar, que jamais é mencionada.
Nem precisa ser citada nominalmente: o clima de medo difuso ou até de paranoia resultante da vida sob um governo autoritário impregna os ambientes das cenas e os relacionamentos entre os personagens. A recorrência do quadro com a foto oficial de Ernesto Geisel (1907-1996), gaúcho que ocupou a Presidência do país entre 1974 e 1979, ilustra a vigilância implacável e o cerceamento das liberdades de expressão e política.
Ao não pronunciá-la, O Agente Secreto transforma a ditadura em uma espécie de espectro. Simultaneamente, o véu sobre seu nome alude à teoria que o diretor e roteirista Kleber Mendonça Filho vem manifestando em entrevistas. Para a BBC News Brasil, ele disse:
— O Brasil, em 1979, passou pela Lei da Anistia. Todos os crimes hediondos, todos os psicopatas, estupradores, assassinos, sequestradores, que cometeram atos de violência em nome do regime militar, eles próprios se perdoaram e cinicamente perdoaram também o outro lado, as pessoas que lutaram contra a ditadura, que lutaram a favor da democracia. E isso eu acho que teve um efeito traumático na sociedade brasileira, que é esquecer para não lembrar. É uma amnésia autoaplicada, quase como uma injeção no bumbum. Isso foi muito ruim para a forma como nós brasileiros lidamos com a memória. O brasileiro adora dizer assim: "Não vamos falar sobre isso, não, isso é muito desagradável. Bola pra frente, deixa pra lá!". Quando eu estava escrevendo O Agente Secreto, eu pensava muito nisso: como vidas inteiras são esquecidas, apagadas.
Esse apagamento e esse esquecimento estão presentes já na primeira cena do filme. Dirigindo um Fusca amarelo, o personagem de Wagner Moura para em um posto de gasolina de beira de estrada para encher o tanque. A poucos metros das bombas de gasolina, jaz o corpo de um homem, protegido apenas por um papelão que tem uma única pedra por cima para impedir o vento de carregar a lápide improvisada.
Diante do espanto empático do protagonista, o frentista explica que não há ninguém para recolher o morto naquela semana de Carnaval: o dono do estabelecimento não liga, a polícia não vai se mexer até lá. O motorista do fusquinha já está para ir embora quando surge uma Brasília da Polícia Rodoviária Federal. Mas o corpo vai permanecer intocado e, na prática, ignorado. O que um dos patrulheiros quer é achacar Marcelo, o personagem principal de O Agente Secreto, um professor universitário da área da tecnologia industrial.
Essa sequência de abertura é excelente tanto na sua construção cinematográfica quanto na sua função como apresentação da história: estabelece o clima de suspense e mostra que a morte vive à espreita, que a polícia age contra os cidadãos e que o protagonista tem uma bagagem cheia de segredos e mistérios (todos bem guardados sob a atuação sutil de Wagner Moura, que investe em minúcias cataclísmicas).

Marcelo — isso se pode dizer sem dar spoiler — viajou a Recife para reencontrar o filho pequeno, Fernando, que ficou sob os cuidados dos avós maternos durante sua ausência.
— Agora minha paz acabou — diz a vó encarnada por Aline Marta Maia.
— Você acha que deveria estar aqui? — indaga o vô Alexandre (Carlos Francisco), projecionista no lendário cinema de rua São Luiz, um dos principais cenários de Kleber Mendonça Filho no misto de documentário e ensaio Retratos Fantasmas (2023).
Clandestino no próprio país, Marcelo quer se refugiar com Fernando no Exterior. Enquanto os passaportes não ficam prontos, o protagonista é acolhido em um condomínio por dona Sebastiana (Tânia Maria), que, com suas tiradas espirituosas, é a maior responsável pelos alívios cômicos do filme. Lá também moram, por exemplo, a dentista Claudia (Hermila Guedes) e um casal de angolanos exilados (interpretados por Isabél Zuaa e Licínio Januário).

Entrementes, conhecemos coadjuvantes de peso, como o delegado Euclides (Robério Diógenes), que trabalha na companhia de seus dois filhos — um de mãe, Sergio (Igor de Araújo), e outro de criação, Arlindo (Ítalo Martins). Mais adiante, surgirão em cena rostos famosos, como os de Maria Fernanda Cândido e Udo Kier, nomes em ascensão, casos de Gabriel Leone e Alice Carvalho, e atores que vamos querer ver mais vezes — Kaiony Venâncio é matador nas suas cenas.
Não cabe aqui detalhar quem é quem e o que cada um faz no filme, para não prejudicar a experiência do espectador. Um dos grandes prazeres de O Agente Secreto é tatear no escuro enquanto Kleber Mendonça Filho vai armando seu tabuleiro, introduzindo seus personagens e interligando a jornada de um com o destino de outro, o folclore recifense com a história do Brasil, o passado com o presente, os bilhetes de Fernando para o pai com os temas do apagamento da memória e da manipulação da verdade, a perna humana encontrada dentro de um tubarão com um gato que tem duas caras.
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