
O dia 24 de junho está associado a um dos capítulos mais sinistros e mais vergonhosos de Hollywood. Nessa data, em 1983, estreou nos cinemas dos Estados Unidos um filme que nunca deveria ter sido lançado — pelo menos não na forma com a qual foi concebido.
Trata-se da antologia No Limite da Realidade, disponível para aluguel no Amazon Prime Video e no Apple TV. Esse é o título dado no Brasil para Twilight Zone: The Movie, que recria episódios da série Além da Imaginação (1959-1964) e que foi marcado por uma tragédia horripilante no set de filmagem: a morte do ator Vic Morrow, então com 53 anos, e de duas crianças que eram figurantes, Myca Dinh Le, sete anos, e Renee Shin-Yi Chen, seis.
O filme nasceu para ser uma homenagem à série bolada por Rod Serling (1924-1975) que foi relançada em 1985, em 2002 e em 2019 e que serviu como inspiração a produções como Black Mirror. Exibidas no auge da Guerra Fria, quando o mundo temia um apocalipse nuclear, suas tramas pisavam nos campos da alegoria política, do thriller psicológico e da prospecção futurista.
Além da Imaginação combinava o terror sobrenatural e a ficção científica para levar os personagens e os espectadores a mundos paralelos, distopias e viagens no tempo e no espaço. Explorava tanto a paranormalidade quanto a paranoia.
Sobre o que é o filme "No Limite da Realidade"?

O filme No Limite da Realidade surgiu por uma iniciativa de Steven Spielberg, que então já era um cineasta do panteão de Hollywood, graças a Tubarão (1975), Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), Os Caçadores da Arca Perdida (1981) e E.T.: O Extraterrestre (1982), e John Landis, que na época curtia o sucesso dos filmes Clube dos Cafajestes (1978), Os Irmãos Cara de Pau (1980) e Um Lobisomem Americano em Londres (1981).
A dupla convocou dois diretores em ascensão para a empreitada: Joe Dante, que havia feito Piranha (1978) e Grito de Horror (1981) e depois faria Gremlins (1984), e George Miller, que recém tinha lançados os dois primeiros segmentos da saga Mad Max (em 1979 e em 1981).
O quarteto dirigiu segmentos baseados em episódios de Além da Imaginação. No de Spielberg, um idoso chamado de Senhor Bloom (Scatman Crothers) está no Asilo Sunnyvale conversando com outros residentes, e todos começam a se lembrar da infância, contando suas brincadeiras favoritas, menos o amargurado Leo Conroy (Bill Quinn). Mais tarde da noite, Bloom revela sua lata mágica e diz a todos que poderá fazer com que rejuvenesçam e revivam as respectivas infâncias.
Dante conta a história de Helen Foley (Kathleen Quinlan), que, viajando para um novo emprego, para num bar do interior para perguntar a direção que deve tomar. Enquanto conversa com o proprietário, ela assiste ao menino Anthony (Jeremy Licht), que jogava num fliperama, ser empurrado por dois outros fregueses que o acusam de, com a máquina causar interferência na transmissão de TV. Helen defende o guri, e as consequências são inesperadas.
No conto de Miller, um estressado e nervoso passageiro (John Lithgow) não consegue se controlar durante uma tempestade que atinge o avião em que viaja. Ao olhar pela janela durante os clarões de relâmpagos, ele fica ainda mais apavorado diante do que avista em cima da asa.
John Landis mesclou dois episódios, Back There e A Quality of Mercy, e escalou como protagonista Vic Morrow, ator que havia ficado famoso pelo seriado Combate (1962-1967). Seu personagem, Bill Connor, é um reacionário que acaba provando do próprio veneno.
No início do segmento, Bill vai se encontrar com os amigos Larry (Douglas McGrath) e Ray (Charles Hallahan) em um bar depois do trabalho. O personagem está amargurado por ter sido preterido em uma promoção — quem ficou com o cargo foi um colega judeu.
Na mesa do bar, Bill passa a proferir comentários preconceituosos e insultos contra não apenas judeus, mas também a negros e asiáticos, culpando-os pelos problemas dos Estados Unidos.
Após reclamar mais um pouco, Bill sai do bar e, gradativamente, percebe que foi parar na França ocupada pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Dois oficiais da SS patrulhando as ruas o avistam e o interrogam, acreditando que ele seja um judeu.
Perseguido, Bill foge e, desta vez, se descobre na zona rural do Alabama, onde um grupo de membros da Ku Klux Klan o vê como um homem negro que estão prestes a linchar. Novamente, ele escapa, e agora ressurge em uma selva durante a Guerra do Vietnã, na mira de soldados dos EUA que o consideram um vietcongue.
Como foi o acidente que matou o ator Vic Morrow e duas crianças?

A morte do ator Vic Morrow e das crianças Myca Dinh Le e Renee Shin-Yi Chen aconteceu durante as filmagens que simulavam a Guerra do Vietnã, às 2h20min do dia 23 de julho de 1982. A cena fatal nem fazia parte do roteiro original: foi adicionada em uma tentativa de suavizar o personagem Bill Connor, possibilitando uma espécie de redenção. Ao ver duas crianças órfãs vietnamitas, Bill decidiria salvá-las a qualquer custo. Então, as carrega debaixo do braço para atravessar o rio, em meio a explosões e ao ataque de um helicóptero estadunidense. Consta que sua última fala era:
— Eu vou manter vocês seguros, crianças. Eu prometo. Nada vai machucar vocês.
Infelizmente, a megalomania de John Landis se impôs sobre questões de segurança. Por ordem do diretor, o helicóptero pilotado por Dorcey Wingo, um veterano da Guerra do Vietnã que estava começando em Hollywood, voava muito baixo, e as explosões aconteciam muito perto da aeronave. Algumas pessoas disseram que aquilo era perigoso, mas a produção do filme fez pouco caso, mandando a filmagem continuar.
Amigo de Vic Morrow e seu ex-colega de elenco na série Combate, Dick Peabody (1925-1999) contou que as últimas palavras do ator, vários minutos antes de a cena acontecer, teriam sido:
— Tenho que ser louco para fazer essa cena. Eu deveria ter pedido um dublê.
Em poucos segundos, o piloto Dorcey Wingo perdeu o controle do helicóptero, que tombou de lado e caiu sobre o lago usado como rio, bem em cima de onde estavam Vic Morrow e as duas crianças — cuja contratação, vale citar, violara leis da Califórnia, que proíbe atores mirins de trabalhar à noite ou perto de explosões.
Morrow e Myca foram decapitados pelas hélices — suas cabeças, dizem testemunhas, voaram com a força do impacto. Renee morreu esmagada pelo helicóptero.
Existe um vídeo de bastidores que foi postado no YouTube. O ambiente é apavorante, e a imagem do acidente, ainda que muito rápida, é terrível. Relatos da época dão conta de que o set ficou em completo silêncio. Até que a mãe de Renee começou a gritar, desesperada.
Apesar da tragédia, em 24 de junho do ano seguinte No Limite da Realidade foi lançado nos cinemas, faturando, nas bilheterias, US$ 42 milhões (quatro vezes o seu orçamento). A cena com as crianças foi totalmente tirada. Eu acho que, no mínimo, o segmento inteiro deveria ter ficado de fora do filme, em respeito às vítimas.
Quais foram as consequências da tragédia no set de filmagem?

Quando soube da tragédia, Steven Spielberg rompeu a amizade com John Landis. Em entrevistas, afirmou que "não vale a pena morrer por nenhum filme" e que, se algo não for seguro, é direito e responsabilidade de cada ator ou membro da equipe gritar "corta!". George Miller ficou tão nauseado que abandonou a pós-produção de seu segmento.
John Landis tornou-se o primeiro cineasta a sentar no banco dos réus por algo que ocorreu em um set de filmagens. Ele, o piloto e outros três envolvidos na produção foram acusados por homicídio culposo. No julgamento, Landis jogou a culpa na equipe dos efeitos especiais, enquanto o piloto e técnicos disseram que o diretor foi negligente e os expôs ao perigo. Todos eles foram absolvidos das acusações.
As famílias processaram o estúdio na esfera civil, recebendo uma indenização estimada em US$ 200 milhões. A carreira de Landis prosseguiu. Ele dirigiu comédias de sucesso, como Trocando as Bolas (1983), Os Três Amigos! (1986) e Um Príncipe em Nova York (1988), e dois clipes famosos de Michael Jackson: Thriller (1983) e Black or White (1991).
Se houve alguma consequência, foi a inédita criação, em Hollywood, de regras para cenas perigosas, como as que envolvem armas e explosões.
Mas o regramento não é imune a falhas humanas, como tristemente comprovaram os casos do ator Brandon Lee, que morreu em 1993, durante as filmagens de O Corvo, após ser atingido por uma bala de verdade que havia ficado presa no cano de um revólver equipado com festim, e da diretora de fotografia Halyna Hutchins, morta em 2021 quando o ator Alec Baldwin, protagonista do faroeste Rust, disparou uma arma cenográfica carregada por engano com munição real.
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