
O lançamento do Veo 3, a inteligência artificial do Google que gera vídeos hiper-realistas, e a troca de farpas entre o presidente dos EUA e o empresário Elon Musk, que foi chamado de "louco" por Donald Trump, tornaram ainda mais atual e mais assustadora a sátira de Mountainhead (2025), filme que estreou na plataforma Max no dia 31 de maio.
Trata-se do primeiro longa-metragem dirigido pelo inglês Jesse Armstrong, 54 anos, criador da série Succession (2018-2023), pela qual ganhou sete prêmios Emmy — quatro como roteirista e três como um dos produtores. São obras complementares, ambas com foco no mundo dos muito ricos e muito poderosos.
Se o seriado girou em torno do conflituoso e traiçoeiro processo de sucessão no conglomerado de mídia e turismo da família Roy, Mountainhead retrata uma turma de bilionários da área de tecnologia, incluindo redes sociais e IA, que vai passar um fim de semana isolada do caos global que eles ajudaram a semear.

A atualidade do filme deve-se tanto ao olhar atento do agora cineasta e ao seu ouvido aguçado (repare como os diálogos fazem uma caricatura de tipos como Musk e Mark Zuckerberg) quanto à velocidade em que Mountainhead nasceu. Em entrevista à BBC, Armstrong disse que apresentou a ideia em dezembro de 2024 e escreveu o roteiro inicial em janeiro. As filmagens foram em março, o título foi revelado em abril, e a edição terminou poucos dias antes da estreia.
O diretor e roteirista queria agilidade na produção para tentar capturar o ritmo dos desenvolvimentos tecnológicos e a sensação de medo da sociedade em relação a acompanhá-los:
— A ansiedade que temos com relação à tecnologia, especialmente a inteligência artificial, parece muito presente e avança muito rápido. E eu queria tentar escrever o filme no mesmo clima em que você estaria quando estivesse assistindo, por isso estava ansioso para fazer rapidamente.
Pontuada pela música ora elegante, ora irônica de Nicholas Britell (o mesmo de Succession), quase toda a trama se passa em uma mansão de sete quartos localizada nas montanhas de Park City, no Utah (Estados Unidos). A escolha do cenário não é nada aleatória: os personagens veem o mundo de cima, em um lugar frio e afastados da vida real.
A casa é batizada de Mountainhead — uma referência a The Fountainhead, o título em inglês do romance A Nascente (1943), de Ayn Rand, escritora cujas ideias são associadas ao neoliberalismo (ela defendia, por exemplo, o capitalismo livre, o individualismo e o chamado "egoísmo racional", além de criticar a intervenção estatal). Seu dono é Hugo Van Yalk, o Sopão (Souper, em inglês), personagem interpretado por Jason Schwartzman, figurinha carimbada dos filmes de Wes Anderson.

Com um patrimônio líquido de US$ 521 milhões, Sopão é o "pobre" do grupo. Venis Parish (papel de Cory Michael Smith, o Chevy Chase de Saturday Night: A Noite que Mudou a Comédia), proprietário da fictícia plataforma de mídia social Traam, soma US$ 221 bilhões. Ele acaba de lançar um recurso que amplifica a disseminação da desinformação: os noticiários vistos no filme contam sobre episódios de violência na Líbia e na Armênia, por exemplo, deflagrados a partir de deepfakes criados com as ferramentas da Traam.
"As autoridades dizem estar saturadas com a quantidade e a qualidade de relatos falsos circulando na rede social", afirma um jornalista, expressando uma preocupação muito semelhante àquela despertada, na vida real, pelo Veo 3. O novo modelo de inteligência artificial da Google é capaz de gerar em segundos, a partir de comandos de texto, vídeos complexos, com narrativa, movimentos de câmera, áudio integrado e até sotaques regionais.
"Você já não sabe o que é verdade e o que não é, não consegue mais identificar facilmente se o vídeo é real ou não. É algo grave, que pode impactar a liberdade de expressão, a democracia, até o processo de tomada de decisão da pessoa", alertou, em reportagem de GZH, Edson Prestes, professor do Instituto de Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coautor da primeira normal global sobre Ética em IA.

Mentor da turma de Mountainhead, Randall Garrett (Steve Carell, dosando o cômico, o dramático, o patético e o sinistro), com US$ 59 bilhões, acaba de ser ultrapassado por Jeff Abredazi (o humorista Ramy Youssef), comandante da Bilter, uma empresa especializada em inteligência artificial, e talvez o personagem mais próximo do que poderíamos chamar de bússola moral.
Ênfase em talvez, porque, no fundo, esses quatro "amigos" olham apenas para o próprio umbigo. A ideia de um encontro longe dos negócios, em nome de uma reconexão afetiva, é só uma fachada para que cada um toque suas agendas pessoais e continue sua busca incessante por mais dinheiro e mais poder. Os problemas do planeta são oportunidades, "as urgências do mundo são combustíveis para dramas particulares", como bem resumiu o crítico PH Santos.
O anfitrião Sopão quer "um bilhãozinho" para investir em um aplicativo de estilo de vida e bem-estar, o Slowzo, provavelmente fadado ao fracasso como os seus projetos anteriores.
Randall, depois de perceber que uma fortuna não é suficiente para "comprar" a cura do câncer, acredita que os empreendimentos de Venis podem levar a uma solução transumanista para sua doença — quem sabe ele será o primeiro da lista nas pessoas a fazer "um upload da consciência humana", o primeiro a ter seu cérebro na rede?
Jeff, à medida que a turbulência mundial se agrava, vê seu patrimônio líquido disparar, graças à tecnologia de verificação de fatos da Bilter. Venis, por sua vez, deseja adquirir a Bilter, para ser dono do veneno e do antídoto.
À medida que a trama avança, esses personagens se tornam, simultaneamente, mais infantis e bobões, mais megalômanos e perigosos.
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