
Os números em torno de O Eternauta (El Eternauta, 2025) impressionam. A série argentina da Netflix estrelada por Ricardo Darín que estreou nesta quarta-feira (30) demandou dois anos de desenvolvimento do roteiro, quatro meses e meio de pré-produção, 148 dias de filmagens e mais um ano e meio de pós-produção.
Entre elenco, figurantes e equipe técnica, mais de 2,9 mil pessoas trabalharam em 50 locações reais e 30 cenários virtuais que criam uma Buenos Aires pós-apocalíptica, coberta por uma neve tóxica e mortal. E 500 máscaras foram confeccionadas para serem usadas pelos personagens nesta adaptação de um clássico das histórias em quadrinhos.
É uma aposta no grandioso, mas a série acerta no genérico.
Pior do que isso: o diretor Bruno Stagnaro, coautor do filme Pizza, Cerveja, Cigarro (Pizza, Birra, Faso, 1997) e realizador da minissérie Okupas (2000), não cumpre nem o risco de transformar uma ficção científica plena de leitura sociopolítica em uma aventura mais epidérmica, calcada na ação e no mistério fantástico, quem sabe até no terror. Os seis episódios da primeira temporada de O Eternauta são cozinhados em fogo muito baixo e carecem do tempero local que sempre acentuou o sabor da receita urdida pelo roteirista Héctor Germán Oesterheld (1919-1977).
Clássico dos quadrinhos

ALERTA DE SPOILERS PARA QUEM NUNCA LEU A HQ ORIGINAL.
O Eternauta nasceu nas páginas da revista argentina Hora Cero Semanal, em 1957, com desenhos de Francisco Solano López (1928-2011). No ano passado, a editora Pipoca & Nanquim publicou no Brasil uma edição de luxo que compila a trama na qual um escritor de quadrinhos — alter ego do próprio roteirista H.G. Oesterheld — recebe a visita de um sujeito chamado Juan Salvo, que afirma ter vindo do futuro e o alerta sobre uma tragédia iminente.
Juan narra a história de uma fria noite de inverno, na qual seu grupo de amigos teve a habitual partida de truco interrompida por uma misteriosa nevasca fluorescente e tóxica, capaz de matar tudo o que toca. Logo descobrem que estão sob uma devastadora invasão alienígena.
O protagonista não é o típico herói hollywoodiano do gênero: politicamente alinhado à esquerda, Oesterheld propõe um heroísmo coletivo, em oposição ao individualismo do sistema capitalista. O impacto da mensagem de resistência e das críticas ao imperialismo e militarismo foi tão grande que até hoje se veem, desenhadas nos muros da Argentina, imagens de Juan Salvo em seu famoso traje de proteção.
Em 1969, o roteirista lançou uma nova versão do quadrinho, agora com desenhos de Alberto Breccia (1919-1993), na qual os extraterrestres aludem mais claramente ao regime militar instaurado na Argentina em 1966 (essa HQ saiu no Brasil pela editora Comix Zone, em 2020).
Em 1976, no ano em que começou uma outra ditadura no país, Oesterheld voltou a fazer parceria com López em O Eternauta II, que também será lançada por aqui pela Pipoca & Nanquim, em 2025.
Em 1977, o autor, que era filiado ao grupo guerrilheiro Montoneros, foi sequestrado pelas forças armadas, junto a suas quatro filhas e três de seus genros. Seus corpos nunca foram encontrados.
Perdas na adaptação

Talvez em nome da universalidade, a série da Netflix abre mão desse contexto histórico, a despeito da ambientação em Buenos Aires, dos diálogos em espanhol e de uma ou outra referência às sucessivas crises político-econômicas da Argentina. O Eternauta deixa de ser "uma alegoria das lutas latino-americanas contra regimes autoritários e injustiças", como apontou Rafael Machado Costa, porto-alegrense bacharel em História da Arte pela UFRGS e em Direito pela UniRitter, com mestrado e doutorado em História, Teoria e Crítica de Arte, dono do canal Ilha Kaijuu no YouTube e autor do prefácio da nova edição brasileira da HQ.
E em nome de um investimento na ação e na tensão que se revela tímido, a série dilui outras reflexões propostas por Oesterheld a partir de dois romances que serviram de inspiração: Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe, e O Senhor das Moscas (1954), de William Golding.
— Oesterheld partiu de Robinson Crusoé para criar o conceito inicial de O Eternauta: um protagonista isolado da civilização em uma situação de perigo tentando sobreviver com os poucos recursos que encontra — comentou Costa em entrevista para a coluna. — Já O Senhor das Moscas também apresenta uma história de pessoas presas em uma ilha, após um acidente aéreo. Mas, no caso da história de Golding, trata-se de um grupo de meninos de uma escola sem que nenhum dos adultos que os supervisionavam tenha sobrevivido ao acidente.
Apesar de as histórias de Defoe e Golding partirem de uma premissa parecida, o discurso delas é oposto, lembrou Costa:
— Em Robinson Crusoé, o sobrevivente isolado é mostrado como alguém capaz de dar o seu melhor para moldar o ambiente selvagem e organizá-lo fazendo dele um lugar bom. Em O Senhor das Moscas, o ambiente selvagem em que não há organização social e punição para atos violentos faz com que as crianças se tornem mais cruéis e violentas umas contra as outras. No primeiro caso, o ser humano é bom e racional e pode levar sua bondade e racionalidade para um ambiente "selvagem" e influenciá-lo de forma positiva, ajudando outras pessoas que encontre por lá. No segundo, o ser humano é em essência mau e egoísta e só não comete crimes por medo da punição das leis. Uma vez levado a um lugar onde as leis e autoridades não existem, nada o impede de manifestar essa maldade e egoísmo.
Segundo o historiador gaúcho, em O Eternauta "os autores colocam os personagens em uma situação parecida de isolamento e fragmentação da sociedade e discutem na obra esses dois possíveis efeitos causados nas pessoas por estarem em um ambiente em que a organização social entra em colapso".
O heroísmo coletivo

O que resiste bravamente na transposição dos quadrinhos para o streaming é a noção de heroísmo coletivo. Conforme Rafael Machado Costa, Oesterheld escreveu as três versões de O Eternauta enquanto a Argentina passava por três diferentes momentos de governos autoritários com projetos econômicos que favoreciam a concentração de renda para poucas pessoas em detrimento da maior parte da população do país. Nos três momentos, o roteirista contou histórias "para denunciar o que ele achava que era errado e propor um mundo em que pessoas superavam suas diferenças em razão de um bem comum".
Na série, Juan Salvo, o personagem de Ricardo Darín, o grande astro do cinema argentino, não tem o protagonismo que existiria em uma produção semelhante de Hollywood. Aliás, outro diferencial é a escolha de um elenco mais maduro, como se fosse uma referência ao passado calejado da América Latina e uma valorização da experiência e da memória em tempos de juvenilização e imediatismo: Darín tem 68 anos, o uruguaio César Troncoso, 62, Marcelo Subiotto, 58, Andrea Pietra, 57, Carla Peterson e Ariel Staltari, 51.
A turma vivida por esses atores sessentões e cinquentões tem de conjugar o verbo unir em um momento global de extrema polarização política. Tem de provar a força e a importância das ações coletivas em uma época na qual o culto ao individualismo é potencializado pelo Instagram e pelo TikTok. E tem de praticar a solidariedade enquanto muitos só conseguem pensar na própria sobrevivência e outros tantos valorizam o acúmulo de riqueza.
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