
O título do filme que entra nesta terça-feira (20) no menu da Netflix é bastante claro: Ela Disse (She Said, 2022) é uma história protagonizada por mulheres — estão no elenco Carey Mulligan (indicada ao Bafta e ao Globo de Ouro de melhor atriz coadjuvante), Zoe Kazan, Patricia Clarkson, Samantha Morton, Jennifer Ehle e Ashley Judd (no papel dela mesma).
Esta é uma história contada por mulheres — a alemã Maria Schrader, realizadora da minissérie Nada Ortodoxa (2020) e do longa-metragem O Homem Ideal (2021), dirige um roteiro escrito pela inglesa Rebecca Lenkiewicz (que concorreu aos prêmios da Academia Britânica e do Sindicato dos Roteiristas dos EUA) a partir de livro das jornalistas estadunidenses Megan Twohey e Jodi Kantor, do New York Times.
Mais do que isso, esta é uma história em que as palavras das mulheres são ouvidas, e não menosprezadas, distorcidas, silenciadas.
No centro de tudo, contudo, há um homem. Talvez o maior predador sexual de Hollywood: Harvey Weinstein, hoje com 73 anos, produtor ganhador do Oscar por Shakespeare Apaixonado (1998) e indicado por Gangues de Nova York (2002). À frente da Miramax (fundada em 1979 com seu irmão, Bob Weinstein) ou da The Weinstein Company (2005-2018), ele bancou filmes como sexo, mentiras & videotape (1989), Pulp Fiction (1994), a trilogia O Senhor dos Anéis (2001-2003) e O Discurso do Rei (2010).

Desde que as primeiras denúncias de assédio e estupro vieram à tona, em outubro de 2017, pelo menos 82 atrizes, secretárias, assistentes e outras profissionais da indústria cinematográfica apresentaram queixas contra esse poderoso chefão. Em 2020, Weinstein foi condenado a 23 anos de prisão, mas esse julgamento acabou anulado em abril de 2024. O tribunal de Nova York considerou que o ex-produtor foi prejudicado pelo juiz, que permitiu o testemunho de mulheres sobre fatos que não faziam parte das acusações a serem analisadas naquele processo.
Em fevereiro de 2023, Harvey Weinstein recebeu mais uma sentença por violência sexual, agora de 16 anos, que ele segue cumprindo na prisão.

Weinstein mal aparece em Ela Disse. Aliás, mal é um personagem. Encarnado pelo ator Mike Houston, surge apenas de longe ou pelas costas. Ou então em breves e ríspidas conversas telefônicas.
É um trunfo do filme. Ao mesmo tempo em que não dá palco para o vilão, relembra que não existe um único vilão: há toda uma cultura e todo um sistema que protegem os estupradores, especialmente quando têm dinheiro e status. Quantos Weinsteins estão por aí, impunes ou sequer descobertos?
Expor as engrenagens dessa máquina de abuso, intimidação e represálias é o objetivo das duas personagens principais: as próprias Megan Twohey, vivida por Carey Mulligan, concorrente ao Oscar de melhor atriz por Educação (2020) e Bela Vingança (2020), e Jodi Kantor, interpretada por Zoe Kazan, das minisséries Olive Kitteridge (2014), The Plot Against America (2020) e Clickbait (2021). Não à toa, quando o filme começa Twohey está no encalço de ninguém menos do que Donald Trump, então candidato à Presidência dos Estados Unidos.
Esse início de Ela Disse, embora eficiente em mostrar um padrão de agressão sexual, difamação da vítima e ameaça à imprensa, adota um ritmo claudicante para apresentar Twohey e Kantor nas suas rotinas profissionais e nas suas vidas domésticas. É como se faltasse cola entre uma cena e a outra.
Também salta aos ouvidos um ponto ambíguo do filme: a trilha sonora composta por Nicholas Britell, ganhador do Emmy pela série Succession (2018-) e indicado ao Oscar por Moonlight (2016), Se a Rua Beale Falasse (2018) e Não Olhe para Cima (2021), é bonita, mas intrusiva. A todo instante é usada para induzir a emoção do espectador.

A partir do momento em que as duas repórteres se unem na mesma investigação, a música segue onipresente, a narrativa fica mais coesa, e Ela Disse busca aproximar-se de algumas obras famosas sobre jornalismo, como Todos os Homens do Presidente (1976) e Spotlight: Segredos Revelados (2015). Mas por mais que a trilha carregue na atmosfera de suspense, aqui os trâmites jornalísticos não se mostram eletrizantes — e ficou romantizada em demasia a cena em que um editor aperta o botão para a publicação da reportagem de Twohey e Kantor.
O público leigo em jornalismo pode não compreender detalhes — fácil de entender é que o New York Times tem orçamento suficiente para fazer uma jornalista viajar para o Exterior sem garantia de que ela vai conseguir a entrevista desejada. E convém ao espectador desinformado sobre Hollywood pesquisar um pouco sobre personagens envolvidos no caso Harvey Weinstein, como as atrizes Gwyneth Paltrow, Rose McGowan e Ashley Judd: o filme não se preocupa em biografá-las.

Voltando ao início deste texto, a força de Ela Disse está expressa em seu título. A diretora Maria Schrader mostra como a obstinação e a empatia de Twohey e Kantor — cujo trabalho contribuiu bastante para o surgimento do movimento #metoo — criaram o ambiente favorável para que as mulheres abusadas por Harvey Weinstein ou testemunhas de seus crimes falassem, revelando o modus operandi do violador e as vis estratégias jurídicas para o abafamento dos casos.
Ainda que um flashback aleatório seja uma distração desnecessária, um grande acerto é o de evitar as reencenações, que poderiam, mesmo que sem intenção, escorregar para a exploração do trauma: basta a memória dolorida das entrevistadas, bastam as suas palavras entremeadas por lágrimas ou marcadas pela raiva.
É antológico o monólogo da personagem de Samantha Morton, que, nos poucos minutos em cena na pele de Zelda Perkins, uma ex-assessora de Harvey Weinstein, provoca arrepio e revolta. E é absolutamente catártica a participação de Ashley Judd, hoje com 57 anos, uma das primeiras atrizes a quebrar o silêncio que protegia Weinstein. Quando a câmera foca no seu rosto iluminado pelo sol, com um sorriso se desenhando e os olhos cor de avelã fitando o horizonte, há de se acreditar na transformação, na justiça e no futuro.
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