
Antes de embarcar para Porto Alegre, na última quinta-feira (9), a jornalista Miriam Leitão escreveu no grupo da família: “Vou ali ser feliz”. Talvez tenha dito “e já volto”, mas isso ela não contou no discurso emocionado que fez ao receber o título de doutora honoris causa da Universidade La Salle, em Canoas, depois de autografar dezenas de livros para estudantes, professores e admiradores que foram conhecê-la. Miriam contou que o número 7 é o número de sua vida.
Nascida em 7 de abril de 1953 na distante Caratinga, em Minas Gerais, Miriam é titular da cadeira número 7 da Academia Brasileira de Letras, que tem como patrono o poeta Castro Alves. Foi a sétima pessoa a receber o título de doutor honoris causa do Centro Universitário La Salle e a primeira mulher a ter sua foto na galeria que inclui o jurista italiano Luigi Ferrajoli.
Acalmem-se os que consideram indelicado mencionar a idade de uma mulher, porque Miriam não tem esse tipo de problema. Aos 72 anos, é uma mulher plural sob todos os pontos de vista. No passado, atacada pela esquerda. Nos últimos anos tem sido alvo preferencial da direita. Passou de neoliberal a comunista nas redes sociais por defender a democracia, o meio ambiente, a ciência e os direitos humanos.
Miriam não é plural apenas por desagradar a esquerda e a direita em momentos políticos diferentes. Aos 19 anos, grávida do primeiro filho, foi presa e torturada pela ditadura militar. Julgada, foi absolvida porque provou que não tinha envolvimento com a luta armada. A única arma que empunha, há mais de meio século, é a palavra. E como sabe usar as palavras essa mineira (meio carioca), que escreve análises políticas com a mesma desenvoltura com que transita pelo mundo da crônica, da literatura infantil, dos textos densos sobre meio ambiente, uma das suas maiores preocupações.
Na memorável noite de quinta-feira, Miriam contou que um dia resolveu conhecer todos os biomas do Brasil. E que se impressionou com o Pampa. Disse mais ou menos assim (porque gravei suas palavras apenas na memória):
Na Amazônia, você olha para cima e se impressiona com as árvores imensas. No cerrado, olha para o lado. No Pampa é preciso olhar para baixo para entender a diversidade dessa imensidão
MIRIAM LEITÃO

Miriam falou do bioma Pampa com uma precisão que escapa a boa parte dos gaúchos. E falou com emoção do Rio Grande do Sul que sofreu com a enchente de 2024, consequência das mudanças climáticas e da homenagem recebida em Canoas, uma das cidades mais afetadas pela tragédia, e da homenagem dos lassalistas:
— É uma alegria inédita na minha vida. Nunca recebi tal honraria acadêmica, uma sensação de realização. Eu fui vista, reconhecida. Especialmente me toca a força do sonho da inclusão de mulheres em espaços de poder e prestígio. E, neste momento, estou sendo a primeira mulher homenageada com o título. É difícil achar as palavras para agradecer esse carinho, mesmo para quem trabalha com elas. A Unilasalle e eu temos os mesmos sonhos, defendemos os mesmos valores da democracia, com inclusão e sustentabilidade. Acreditamos que a educação é a melhor arma para esse projeto. E por isso é tão honroso estar ligada a partir dessa noite a essa instituição — encerrou, emocionada.
Passava das 22h quando saímos de Canoas para jantar no Asiana, um dos restaurantes asiáticos em Porto Alegre, e brindar com espumante de Pinto Bandeira o título entregue pelo reitorIrmão Cledes Casagrande. No ambiente de descontração, Miriam contou como a literatura está na raiz do seu casamento com o sociólogo Sérgio Abranches, uma relação de companheirismo, afinidade intelectual e respeito. No começo do namoro ela perguntou a Abranches qual era seu livro preferido.
— Grande Sertão Veredas — ele respondeu de pronto.
— Resposta certa — comemorou ela, admiradora de Guimarães Rosa.
Essa história teria sido contada em detalhes numa conversa da dupla em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, em julho de 2019, não fosse a intolerância que obrigou os organizadores da Feira do Livro a cancelarem a palestra do casal na mesa Literatura Afetiva. Alegação? Não tinham como garantir a segurança de dois escritores diante das ameaças de morte, precedidas de um abaixo-assinado contra a presença dos dois.
Sem intenção de fazer um desagravo, a Unilasalle deu a Miriam Leitão e Sérgio Abranches uma mostra de que o sul do Brasil não é Jaraguá. Canoas recebeu a doutora Miriam com palmas, abraços, beijos e um discurso sob medida, escrito pela professora Lúcia da Rosa, coordenadora do Programa de Pós-graduação de Memória Social e Bens Culturais da Unilasalle.
A Unilasalle foi corajosa. Não é fácil bancar uma homenagem a Miriam Leitão nestes tempos nada ditosos de intolerância.





