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Se Gabriel García Márquez não tivesse escrito Cem anos de solidão, obra-prima do realismo fantástico na literatura, Cem anos de sigilo sobre encontros impublicáveis poderia ser título de livro sobre o governo de Jair Bolsonaro. Primeiro, o presidente da República impôs cem anos de sigilo sobre sua carteirinha de vacinação — uma irrelevância que só fez aumentar a dúvida sobre a veracidade de suas reiteradas afirmações de que não se vacinou contra a covid-19.
Agora a situação é mais grave. Bolsonaro impôs sigilo de cem anos para a informação sobre seus encontros com os pastores Arilton Moura e Gilmar Santos, os lobistas que pediam propina para liberar recursos do Ministério da Educação. Em resposta a um pedido feito pelo jornal O Globo com base na Lei de Acesso à Informação, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo ministro Augusto Heleno, respondeu que a solicitação não poderia ser atendida, porque a divulgação dessa informação poderia colocar em risco a vida do presidente da República e de seus familiares.
Como assim? Colocar em risco a vida do presidente e de seus familiares, por informar quantas vezes Bolsonaro se encontrou com os pastores que pediam propina em dinheiro vivo, ouro ou compra de Bíblias? Conta outra, general Heleno.
Se o presidente não tem o que temer, por que a Presidência decretou sigilo de cem anos sobre essas agendas? Essa pergunta foi feita de outra forma por Lucas Elias Bernardino, no Twitter. Escreveu o rapaz: “Presidente, o senhor pode me responder porque todos os assuntos espinhosos/polêmicos do seu mandato, você põe sigilo de 100 anos? Existe algo para esconder?”. Bolsonaro, ou o filho Carlos que tem a senha de suas contas nas redes sociais, respondeu: “Em 100 anos saberá”.
Em cem anos, Bolsonaro, os filhos, os pastores e todos nós que acompanhamos apreensivos os fortes indícios de corrupção no MEC já teremos morrido. Que escafandrista da História do século 21 haverá de se interessar por isso em 2122?
O sigilo de cem anos existe na legislação brasileira para documentos ultrassecretos, que tenham relação com a segurança nacional.
Em janeiro de 2021, quando decretou sigilo de até cem anos ao cartão de vacinação de Bolsonaro, a Secretaria-Geral da Presidência da República usou justificativa igualmente risível, de que "os dados dizem respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem" do presidente.
Também no ano passado, a Presidência impôs também sigilo de até um século sobre a relação de quais filhos de presidentes têm ou tiveram, desde 2003, crachás de acesso ao Palácio do Planalto. Na ocasião, a explicação dada foi a mesma da carteirinha: seriam informações pessoais "relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem".
Os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura estão sendo investigados pela Polícia Federal a partir de depoimentos dos prefeitos que dizem ter sido assediados pelos dois com pedido de propina para protocolar projetos ou liberar recursos do MEC. Como todos dizem que não pagaram, não será surpresa se o inquérito acabar arquivado porque só existem provas testemunhais.