
Em qualquer guerra, cada ator molda a própria narrativa para fortalecer sua posição perante o público interno ou internacional. No atual conflito, Donald Trump se apresenta como o pacificador, os terroristas do Hamas afirmam ter forçado Israel à negociação, e Benjamin Netanyahu reivindica o protagonismo por "trazer os reféns de volta".
No entanto, para projetar o futuro político do primeiro-ministro israelense, é necessário voltar no tempo exatamente 739 dias, até 6 de outubro de 2023 — 24 horas antes de os terroristas cruzarem a fronteira de Israel e iniciarem seu festim diabólico.
Àquela altura, Netanyahu era questionado internamente e réu por corrupção. Israel atravessava um dos períodos políticos mais conturbados e polarizados de sua história, marcado por instabilidade política, protestos em massa e crises institucionais: o país realizara cinco eleições parlamentares em menos de quatro anos, reflexo do impasse político entre blocos rivais que impediam a formação de governos estáveis. O sistema parlamentar israelense favorece coligações, mas a fragmentação partidária, somada à figura polarizadora de Netanyahu, dificultou acordos duradouros.
O país viveu alternâncias de governo entre Netanyahu e alianças amplas de oposição. Em 2021, por exemplo, uma coalizão anti-Netanyahu formada por partidos ideologicamente divergentes (incluindo árabes e ultradireitistas) assumiu o poder sob Naftali Bennett e Yair Lapid, mas desmoronou em 2022.
Netanyahu retornou ao poder em dezembro de 2022, liderando a coalizão mais à direita da história de Israel, incluindo partidos religiosos e ultranacionalistas.
Ao longo de 2023, especialmente nos meses que antecederam aos atentados, grandes manifestações populares tomaram conta de Israel. O motivo era o plano de Netanyahu de promover uma profunda reforma no sistema judiciário, reduzindo o poder da Suprema Corte de revisar leis aprovadas pelo parlamento e implementando maior controle do Executivo sobre nomeações dos magistrados.
Ele estava minando os freios e contrapesos da maior democracia do Oriente Médio para se proteger das acusações de corrupção. Milhares foram às ruas semanalmente, incluindo reservistas das Forças de Defesa de Israel (IDF). Pilotos da força aérea e militares da reserva ameaçaram não se apresentar ao serviço, sinalizando fissuras graves dentro do aparato de segurança nacional.
Apesar do foco interno na reforma judicial, havia alertas crescentes de que o Hamas estava se reorganizando e de que a segurança nas fronteiras estava sendo negligenciada. O governo e o sistema de inteligência foram acusados de subestimar a ameaça do Hamas, concentrando-se excessivamente na Cisjordânia.
O massacre protagonizado pelos terroristas em 7 de outubro deixou tudo em suspenso — a união nacional em torno do objetivo de trazer os reféns de volta e a guerra em Gaza deram sobrevida ao governo.
A libertação dos reféns é, para Netanyahu, uma oportunidade de reivindicar êxito: um momento fortemente simbólico que pode ser usado como prova de sua capacidade de comando, algo sempre associado à sua base eleitoral mais conservadora.
Entretanto, alguns membros da ala mais radical da coalizão de governo veem o acordo como concessões inaceitáveis diante de terroristas — libertar 1,2 mil criminosos, então, seria capitulação. O desafio será manter a coalizão coesa, equilibrando pressões internas contra a estratégia de negociação.
Netanyahu entrou no acordo em um momento de avaliação pública fragilizada, com desaprovação alta entre a população e desgaste acumulado pelo manejo da guerra. Há quem diga que pode ter “prolongado a guerra para se manter no poder”.
A terça-feira, 14 de outubro de 2025, tende a ser o dia 1 do verdadeiro campo de batalha política: por que o governo não se antecipou ao ataque de 7 de outubro é uma pergunta latente? Por que demorou tanto para resgatar os reféns? Netanyahu pode enfrentar uma crescente onda de responsabilização.
Israel realizará eleições em outubro do ano que vem. Se souber capitalizar o momento, Netanyahu pode reverter parte do desgaste. Afinal, poucos líderes no mundo dominam tão bem a arte da sobrevivência política. Acuado inúmeras vezes, ele sempre encontra uma brecha para voltar ao centro do tabuleiro. Move-se como quem conhece cada atalho do poder. Afinal, o mais longevo premier de Israel sabe como poucos transformar crise em oportunidade.


