
Autora do livro "Manual de Direito da Mídia e do Entretenimento" (Quartier Latin), a advogada gaúcha Simone Lahorgue Nunes trabalhou por 11 anos como diretora jurídica das Organizações Globo.
É professora da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio). Na quinta-feira (3), ela palestrou na Faculdade de Direito da UFRGS, na Capital, sobre liberdade de expressão, direito à informação e liberdade de imprensa na era digital.
Ela conversou com a coluna.
A quem se destina o livro?
Essa é uma área pouco conhecida, que nem se estuda na faculdade de Direito: direito autoral, direito da mídia e do entretenimento, isso não existe. O que existe é Direito Constitucional, aí você vê um pouquinho de liberdade de expressão, mas dentro de 500 mil outros assuntos da Constituição. Fiz um curso e o adaptei esse curso pra graduação. Leciono um semestre de "privacidade e proteção de dados", e, em outro, Direito da mídia e do entretenimento.Quando eu comecei a lecionar essa disciplina, eu me vi em uma situação muito desagradável, que eu não tinha nenhuma obra pra indicar. Pensei: não é possível que estejamos falando sobre um setor responsável por um percentual enorme do PIB, exportamos conteúdo criativo sobre as mais diversas formas, audiovisual, música, obras de artes plásticas, e que não se tenha isso compilado, de forma compreensiva. Tenho experiência de 11 anos de organizações Globo e mais 11 anos com clientes internacionais de empresas de mídia e entretenimento que atuam no Brasil: New York Times, The Sun, Netflix, HBO. Pensei: preciso compartilhar esse conhecimento, escrever tudo o que aprendi. Até para que as pessoas, a partir dessa obra, comecem a se interessar e também escrever. É um tema muito controvertido: estamos falando da ponderação entre dois princípios constitucionais, liberdade de expressão e direito à privacidade.
Princípios que estão sempre em tensionamento, né?
Sempre em tensionamento e que você só vai decidir no caso concreto. O Supremo já determinou a posição preferencial da liberdade de expressão diante do direito à privacidade e a outros princípios constitucionais, que é também a posição preferida nos Estados Unidos. Claro, não exatamente igual aos Estados Unidos, mas é um caminho muito intermediário, eu diria, entre o que é a Europa e o que é os Estados Unidos. Nos EUA, o jornalista só será responsabilizado por uma matéria onde contenha, realmente, alguma ofensa contra alguém se, de fato, for provado que ele teve a intenção de fazer aquilo de forma dolosa. No Brasil, não chegamos a esse ponto. Mas incorporamos a doutrina do direito à liberdade de expressão face o da privacidade. Porque a privacidade é um direito de um e a liberdade de expressão é um direito da sociedade.
Como a senhora avalia o tema do direito autoral diante da inteligência artificial (IA)?
No Brasil, incorporamos a doutrina do direito à liberdade de expressão face o da privacidade. Porque a privacidade é um direito de um e a liberdade de expressão é um direito da sociedade.
Há várias vertentes importantes. Uma delas, sem dúvida, é direito autoral, questões como quem é o autor de um material produzido pela IA. A nossa lei diz que o autor tem de ser uma pessoa física, diferentemente dos Estados Unidos, onde pode ser uma pessoa jurídica. No caso da IA, então, não teria autoria? Estaria em domínio público? Então, todo mundo pode copiar? Uma outra questão importantíssima é o treinamento dos sistemas de inteligência artificial. O que essas máquinas usam para serem treinadas? São obras protegidas? Os jornalistas do The New York Times estão dizendo: "Como assim? Você está usando os meus artigos, todo o meu material, que é de minha titularidade? Tenho copyright sobre isso". A OpenAI está dizendo: "Não reproduzo. Estou usando só um pedaço". Essas discussões estão ocorrendo ao mesmo tempo no mundo inteiro.
Como estão essas discussões em relação ao entretenimento?
Nos EUA, há decisões que avaliam o quanto de IA foi usada em determinada criação. Todo mundo está usando. Mas o quanto se exige em uma criação em que se utilizou de um sistema de IA para que aquilo seja considerado uma criação humana e não de uma criação da máquina? Já houve uma decisão sobre uma uma fotografia em que um autor utilizou IA e tentou registrar nos Estados Unidos como copyright. A decisão foi: feita a análise, verificamos que a intervenção humana foi mínima. Há quem defenda que criações de inteligência artificial são feitas a partir de tudo o que já está no conhecimento humano. Portanto, deveria estar em domínio público. Há correntes acadêmicas fortes defendendo isso, de A a Z. Outra questão importante é a questão da remuneração do jornalismo tradicional. Os jovens se informam pelo TikTok. Então, a gente precisa analisar o que é o TikTok, o que nos leva a outro tema, o da responsabilidade das plataformas pelo conteúdo gerado por terceiros.
Qual a sua opinião sobre a decisão do Supremo em relação ao Marco Civil da Internet?
Há pessoas séria que estão criticando, dizendo que o Supremo, na verdade, não poderia ter legislado. Mas, na minha opinião, a gente está em um ambiente de terra de ninguém nas plataformas digitais. Há, inclusive, uma ameaça muito grande ao Estado democrático de direito. Então, infelizmente, o nosso Congresso é um mercado livre: as coisas andam ou não andam de acordo com os interesses dos grupos que lá estão fazendo o lobby. Acho que os ministros se viram diante de uma situação de ter de fazer alguma coisa. Tanto é que a tese começa dizendo: "Até que seja editada uma lei, nós determinamos...". Reconhecendo que isso tem de ser regulamentado por lei e que há um projeto parado no Congresso sobre redes sociais. Isso tudo se deve a esse cenário no Brasil, em que o Congresso se omite e o Supremo acaba tendo de tomar posições no sentido de evitar uma catástrofe maior.
Publicação de conteúdo nazista, pornografia infantil, incitação ao ódio...
Exatamente, é uma coisa absolutamente desregrada. E mesmo a gente tendo a LGPT, que, graças a Deus, o Brasil praticamente copiou a lei europeia. A gente tem um capítulo inteiro sobre a questão do consentimento da criança para acesso a conteúdos nas redes sociais. A rede pergunta: "Você tem mais de 18 anos?" A criança responde "tenho". Pronto. Alguma coisa tem de ser feita sobre suicídio, automutilação em "brincadeiras" entre adolescentes.
As plataformas lavam as mãos.
Quando o Marco Civil foi editado, em 2014, foi festejado. Foi uma lei muito bem escrita na minha visão, Tínhamos um cenário totalmente diferente em termos de desenvolvimento tecnológico. A gente precisa rever: não é possível que só o que deve ser retirado pelas plataformas são cenas de nudismo e de intimidade. Isso é muito menos importante, na minha visão, do que cenas envolvendo crianças, pornografia infantil.
Alguns setores afirmam que regulamentação implica violação de liberdade de expressão. Qual é o limite?
Em primeiro lugar, esses movimentos se apoderam do discurso da liberdade de expressão. Se você olhar a Constituição, há pelo menos cinco artigos na Constituição que falam da liberdade de expressão. Mas nenhum princípio constitucional, nem mesmo a liberdade de expressão, é absoluto. O que quer dizer que ele, algumas vezes, vai ceder em função de outros princípios constitucionais que são mais importantes em casos concretos. A liberdade de expressão é uma coisa importantíssima porque visam proteger a sociedade como um todo, mas é óbvio que será limitado. Antes do Marco Civil, as pessoas notificavam as plataformas, e elas tinham uma moderação interna e baixavam os conteúdos. Isso funcionava. Só que, lá pelas tantas, quando veio o Marco Civil, as plataformas passaram a lavar as mãos. Foi assim que tudo começou. Com o Marco Civil, pararam de fazer moderação, de gastar dinheiro com fact-checking. Agora, não checam mais nada. E vão lá e impulsionam o conteúdo, ganham dinheiro com isso. Então, como não são responsáveis? Eles, inclusive, ganham dinheiro criando bolhas de informação. Aí, a gente entra em outro tema importantíssimo, o da responsabilidade das plataformas pelo processo democrático, pelas eleições. Porque a gente viu o que foi o escândalo com o Cambridge Analytica, as polarizações, as fake news.