
O jornalista Vitor Netto colabora com o colunista Rodrigo Lopes, titular deste espaço.
O embaixador da Ucrânia no Brasil, Andrii Melnyk, esteve no início desta semana no Rio Grande do Sul. Após visitar Canoas, onde há uma comunidade ucraniana com aproximadamente 60 famílias, ele esteve em Porto Alegre onde visitou a Fiergs, UFRGS, Assembleia Legislativa e o governador Eduardo Leite. Ele concedeu uma entrevista exclusiva à coluna, falando sobre a sua passagem pelo Estado, sobre a guerra, relação com os EUA e, principalmente, com o governo federal e o presidente Lula.
Qual foi o propósito da visita ao Rio Grande do Sul?
A principal razão é, em geral, ampliar o círculo de amigos da Ucrânia no Brasil, porque precisamos de amigos. O Brasil é um aliado importante para a Ucrânia e está se tornando mais, não apenas como uma potência econômico, mas também em termos geopolíticos. Estamos focados na política federal do Brasil, no Congresso. Passo todo dia no Congresso tentando explicar o que está acontecendo e nos envolvendo. Mas, como o Brasil é grande, cada Estado tem um papel especial. E o Rio Grande do Sul é um dos maiores em termos de economia e de influência política. Estou feliz que o governador Eduardo Leite tenha achado tempo para nos encontrar, é mais do que apenas um gesto ou sinal de interesse. Mas foi mais do que isso: uma conversa muito boa, focada, é claro, nos eventos atuais, porque temos essa guerra terrível. Vocês enfrentam as consequências das chuvas e tentando se recuperar depois dessa tragédia do ano passado. Mandei a ele uma carta de solidariedade quando ocorreu essa catástrofe. Estamos tentando olhar para o futuro.
Que oportunidades de cooperação entre o RS e a Ucrânia o senhor vê como possíveis?
Muitas, porque a Ucrânia e o Brasil, especialmente o Rio Grande do Sul, têm muitas similaridades em termos de estruturas econômicas e investimentos. São duas economias com foco no agronegócio. Quase 50% da exportação é gerada a partir do agronegócio. Na Ucrânia é mais de 40%. Mesmo em tempos de guerra. Ao mesmo tempo, estamos tentando obter mais valor agregado e para industrializar mais e fabricar produtos que não sejam apenas commodities. Isso é algo que nos une. É um grande desafio livrar-se dessa tradição. Especialmente se você depende de poucos compradores, como, no caso de vocês, a China. Para a Ucrânia ocorreu o mesmo com a Rússia antes da guerra, mas agora mudou. A União Europeia é o nosso maior parceiro comercial. Gostaríamos de diversificar nossa estrutura. Temos os mesmos desafios. Vocês têm tecnologias que podem ser interessantes para nós, e vice-versa: como os drones que desenvolvemos por causa da guerra, como um meio de defesa. Estamos produzindo milhares de drones com o propósito militar. Mas isso começou no setor agrícola, porque as pessoas estavam desenvolvendo para usá-los para trazer fertilizantes ao campo. Agora, desenvolveu-se por causa dessa terrível guerra que a Rússia começou. São apenas algumas ideias com as quais concordamos, tanto o governador quanto a comunidade de negócios.
O senhor visitou a UFRGS. Quais oportunidades existem no campo da educação?
Tentamos identificar assuntos que poderiam ser interessantes para a UFRGS e para alguns companheiros ucranianos. Decidimos organizar chamadas de vídeo entre o reitora Marcia Barbosa e algumas universidades na Ucrânia. Vamos focar nas relações internacionais: entre a faculdade daqui e minha alma mater, onde vamos tentar encontrar currículos em comum para que professores possam fazer leituras online para os alunos aqui, para explicar o que está ocorrendo no Leste Europeu e na Ucrânia, não só sobre a guerra, mas geopoliticamente. Para que seus professores possam abrir e ensinar nossos alunos sobre o papel do Brasil, sobre os Brics e outros assuntos. O segundo ponto seria na esfera médica: a Ucrânia tem sido, mesmo em tempos de guerra, um local para centenas de milhares de alunos estrangeiros vindos de todo o mundo. Vamos tentar encontrar uma conexão. O terceiro ponto foi proposto pela parte brasileira: mudanças climáticas. Não só por causa das inundações, mas porque precisamos fazer mais pesquisas nesse sentido. Para nós, é semelhante, porque precisamos lidar com as consequências da guerra. Não é apenas o clima. Essa guerra está provocando destruição não apenas nas cidades, não apenas matando pessoas, mas trazendo estragos para a natureza. Chamamos de ecocídio, porque um terço da Ucrânia sofreu por causa da contaminação com minas e vai levar décadas (para se recuperar). Estamos começando, agora, a entender como fazer isso quando a guerra acabar.
Falando sobre a guerra: como você descreve o momento da guerra? Está perto, no meio ou longe do fim?
Infelizmente, não há um fim certo. Talvez haja mais esperança que, com o novo presidente dos EUA (Donald Trump), se encontre uma solução que seria aceitável para nós. Porque pode haver uma solução que não seja aceitável e isso não trará paz. Precisamos de uma solução justa, isso é algo que nós estamos conversando com a nova administração, pessoalmente com o presidente Trump. Precisamos de algo mais do que apenas parar de lutar. Não seria suficiente, porque precisamos de uma solução que seja justa, que leve em conta a posição da Ucrânia, provavelmente dos russos também. Isso deve ser um equilíbrio, e isso não é fácil. O ponto positivo é que o novo presidente (Trump) prometeu durante a campanha acabar com a guerra em 24 horas.
O senhor acredita nisso?
As 24 horas se passaram, mas agora sentimos o engajamento da nova administração e tentamos entender isso. É a maior guerra em solo europeu desde 1945 em termos de pessoas sofrendo, refugiados que deixaram o país, destruição da infraestrutura, para as cidades, para a natureza, para tudo. Ainda estamos no meio de uma das piores fases da guerra, a mais difícil. Os russos não são estúpidos, eles estão aprendendo com os erros e, em três anos, conseguiram aumentar a produção de todas as armas: mísseis balísticos, drones. Toda a economia da Rússia está crescendo por meio da indústria de defesa. O Estado dá ordens e paga para a indústria para produzir tudo o que precisarem para a guerra. A Rússia ainda é o maior país do mundo em extensão, tem o segundo maior setor de armas do mundo e é um dos maiores exportadores. Pensaram que a Ucrânia iria desistir nos primeiros dias ou semanas do conflito. Isso não aconteceu, e então eles começaram a investir tudo que tinham para a guerra. Agora, parece uma vingança. Vladimir Putin precisa mostrar a sua população, à elite política e militar, mas também ao mundo, que ele está vencendo. E, de fato, sim, ele está. Estão se movendo para a frente há cinco meses. É por isso que ele está fazendo também uma guerra psicológica direta nas mentes das pessoas na Europa e nos EUA para mostrar que não é possível parar a Rússia. Para mostrar que são inquebráveis, que você não pode ganhar, que não pode fazer nada. Precisamos ser honestos: a situação é crítica para nós.
Há receio de que o novo governo dos EUA possa parar de prestar ajuda à Ucrânia?
Claro, há um risco: pode continuar com o apoio, aumentá-lo ou fazer algo mais. Nossa expectativa é de que o novo presidente esteja disposto a fazer essa contribuição. Eles querem ajudar a acabar com a guerra, para passar para a História, e isso é um desejo nobre. Mas não há soluções fáceis. Você não pode apenas dizer a Putin para parar essa guerra. Para alcançar esse objetivo, você precisa ter instrumentos, e um deles que os americanos têm em mãos é não acelerar agora, mas continuar com o apoio militar. Essa é a chave para mostrar que os russos não podem continuar se movendo. Se você fosse Putin e seus generais lhe reportassem todos os dias: "Hoje esse é o mapa, capturamos aquela vila e aquela, e agora estamos tentando aquela pequena cidade". Por que Putin diria: "Ok, vamos começar as negociações"? Por que ele deveria parar? É claro que há um risco, mas, de novo, pensamos que realmente, as primeiras ações do time de Trump estão voltadas para a preparação do terreno para as negociações e devem ser para ajudar a Ucrânia ainda mais do que antes.
O presidente Lula culpou ambos os países pela guerra. O que o senhor pensa sobre isso? Tem conversado com o governo brasileiro?
Estamos tentando. Sou o primeiro embaixador nesse país em 30 anos. Fui membro do governo na Ucrânia, duas vezes. Não perdi um único minuto nesse um ano em Brasília que fosse para encontrar, chamar, tentar arrumar reuniões, telefonmas entre o presidente Lula e o meu presidente (Volodymyr Zelensky). Mas, infelizmente, e nós não temos realmente uma explicação para isso, não há vontade real para nos engajar nessas conversas. Quando cheguei (2023), conseguimos ter a primeira reunião dos presidentes Zelensky e Lula no fim de setembro, em Nova York. Foi uma conversa muito boa. Meu presidente estava realmente entusiasmado, porque também havia muitos comentários que ouvimos do Brasil, sobre ideias semelhantes, "dos dois lados". Então, houve um ponto em que podíamos ter algum engajamento real. Porque, mesmo se você tiver opiniões divergentes, você pode continuar conversando. Às vezes, isso pode funcionar. Mas, infelizmente, essa foi a primeira reunião e a última até agora. Não porque paramos de fazer algo. Houve milhares de pedidos do nosso lado, do presidente, da embaixada, chegando à administração, ao presidente Lula, dizendo: "Vamos continuar (conversando), vamos fazer um telefonema, uma visita". Esperávamos que o presidente Lula pudesse ter feito uma parada em Kiev no caminho para a cúpula dos Brics na Rússia no ano passado. Estávamos preparando tudo isso, mas, infelizmente, não havia preparação para se encontrar com o presidente Zelensky, com o governo da Ucrânia. Em quase um ano e cinco meses, houve um total silêncio no mais alto nível entre nossos presidentes. E isso é algo que não conseguimos entender. Meu presidente não pode entender. Claro que tenho algumas explicações para ele, porque ele continuou me perguntando o tempo todo. Para ele (Zelensky), o Brasil importa. Se você fosse o presidente ucraniano, você diria: "Ok, vamos nos concentrar nos países que ajudaram", como os EUA, a Europa, a Alemanha e outros. Mas essa não é a abordagem do meu presidente, porque ele respeita o Brasil, acredita que tem um especial "soft power". Há poucos países no mundo que não só têm esse potencial econômico, geopolítico, mas também esse poder suave. Todo mundo ama o Brasil, porque vocês combinam natureza paradisíaca, pessoas boas de coração, grandes oportunidades e esse superpoder em termos de "soft power". Mas isso não foi usado. Vocês estão perdendo essa chance. O Brasil ainda tem a chance de encontrar seu papel nesse processo. Não será fácil: mesmo se os EUA empreendessem todos os seus poderes, ainda assim haveria um processo e outros atores seriam necessários para ajudar.
Quais as razão para essa comunicação difícil entre os governos brasileiro e o ucraniano?
Eu não quero especular, mas, de novo, o que eu ouço como embaixador é que o Brasil tem como tradição o não envolvimento, a neutralidade nas guerras estrangeiras, o que é compreensível. Respeitamos essa posição. Mas o que nós vemos, na prática, é uma quase política de não envolvimento vis-à-vis com a Ucrânia, sem vontade de falar no nível mais alto, e, ao mesmo tempo, contatos intensificados em todos os níveis com a Rússia, que está lutando uma guerra contra nós. Isso é contraditório, porque você diz que é neutro, mas, ao mesmo tempo, a partir de nossa perspectiva, o Brasil não é neutro.
E quais as razões?
Não sei. Você deve perguntar à equipe de Lula, por que eles decidiram seguir nesse caminho. Talvez porque acreditem que a Rússia é invencível e que, por isso, é mais seguro não irritá-los. Às vezes, ouço: "Por que o presidente deve falar? Deixe-nos gerenciar em nível inferior". Não, isso não vai funcionar, porque em questões como as que temos na mesa, sobre guerra e paz, somente o envolvimento do maiores líderes importa. Você não pode delegar a um especialista. Ou com algum deputado? O que ele chegaria? Não. Se você diz, como governo brasileiro, que vai se engajar, que tem um plano, que é sério sobre suas intenções, como facilitador e talvez em algum momento como um mediador, então, o presidente Lula teria de se envolver pessoalmente. Isso significa, falar com o Putin, conversar com o meu presidente, ir a Kiev, convidá-los a vir ao Brasil, criar alguma plataforma. Não temos nenhuma relação diplomática com a Rússia, não podemos falar com eles. Vocês têm, você tem uma embaixada muito bem conectada em Moscou, seu embaixador, como sabemos, teve acesso a escalas de poder. Então, vocês podem transmitir mensagens, e o melhor jeito de fazê-lo é no nível presidencial. É um pecado que essa oportunidade que o Brasil tem não seja usado para parar essa loucura. Isso trazia reconhecimento geopolítico para o Brasil.