Um dos principais pesquisadores de política externa brasileira, o professor André Reis da Silva, do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aponta a necessidade de ajustes emergenciais como parte das primeiras medidas do novo chanceler, Carlos Alberto Franco França, que substituirá Ernesto Araújo.
Na opinião de Reis, que em janeiro de 2019 apontava, em entrevista à coluna, os equívocos da política externa que ora se apresentava, com foco na luta contra o suposto "globalismo", afirma que o resultado dessa estratégia é o fato de o Brasil hoje estar desgastado com as duas maiores potências do planeta, Estados Unidos e China.
Em nova conversa com a coluna, nesta terça-feira (30), ele traça comparações entre os perfis de Araújo e França, ambos sem experiência em postos importantes no Exterior, característica dos diplomatas de carreira que chegam ao topo do Itamaraty.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
É possível esperar que a troca no cargo de chanceler mude a orientação da política externa brasileira?
Sim, alguma mudança vai haver, mas a gente primeiro tem de olhar o perfil do novo ministro. Há dois anos, logo no início do governo Bolsonaro, quando o chanceler Ernesto Araújo fez seu discurso de posse, já era possível observar que aquele projeto de política externa colocado ali tinha uma série de problemas, estava em desacordo com os interesses brasileiros no sistema internacional. A leitura que eles faziam do sistema internacional estava em desacordo com a realidade da estrutura de poder global e que traria uma série de complicações a médio e longo prazos para o país. A saída de Araújo é fruto de uma série de pressões e do fracasso da política externa nos últimos dois anos. Ela acumulou ao longo desse período uma série de derrotas, cujo grande resultado é o isolamento do Brasil no sistema internacional. Isso apareceu muito claramente nos últimos dois ou três meses e foi acirrado pelo contexto da pandemia. Não temos ainda o discurso oficial do novo ministro, para que possamos perceber o tipo de mudança, o ritmo, a política que vai colocar. Pelo seu perfil, é discreto e moderado e, como Araújo, carece das características típicas de um ministro oriundo da Casa, ministro diplomata.
Ficamos consumindo esse capital diplomático, fragilizando a inserção internacional e entrando num isolamento. O novo chanceler tem um trabalho grande pela frente, mesmo que seja apenas para fazer ajustes.
A exemplo de Araújo, França não tem ascendência intelectual sobre os colegas diplomatas e não ocupou cargos estratégicos em postos no Exterior, algo que o senhor destacava em 2019 como primordiais para a liderança do Itamaraty?
Exatamente, ele carece das características usuais de um ministro de carreira, não tem experiência no Exterior no comando de embaixadas e postos importantes. E não tem ascendência intelectual sobre o grupo de diplomatas, como formulador de política. Ele não tem um perfil de liderança interna no Itamaraty. Nesse sentido, a impressão é que a formulação continuaria a ser feita de fora do Itamaraty, restando ao ministro vocalizar os interesses desse grupo, que a gente pode chamar de "olavista", nucleado em torno do filho do presidente, deputado Eduardo Bolsonaro, e pelo assessor Filipe Martins. A primeira impressão que passa com a escolha é que a formulação (da política externa) não será feita de dentro do Itamaraty. Entretanto, essa mudança é necessária e pode sinalizar algumas questões: abrir canais de diálogo, seja, em primeiro lugar com o governo Biden, que estava muito inviabilizado com o grupo de Araújo, na relação do Brasil com o governo Trump, principalmente na questão da invasão do Capitólio. A saída de Araújo também pode abrir canais de diálogo com a China, cuja animosidade com o embaixador chinês no Brasil chegou a níveis muito altos no passado. Araújo pediu a cabeça do embaixador chinês, mas, na verdade, a que caiu foi a dele, como ministro brasileiro. Não acredito em uma mudança mais profunda da política externa de Bolsonaro, mas haverá o que, em análise de política externa, chamamos de ajuste. Não vai haver uma reorientação, porque isso feriria algumas bases ideológicas do governo. Mas ajustes que a gente já vinha apontando desde o início do governo como necessários, porque tinha problemas que aparecem agora mais claramente: isolamento internacional, críticas de setores importantes no Brasil. A pandemia só acirrou isso, mas a gente vinha observando os problemas desde o início do governo, em março de 2019: na visita a Israel, no plano de transferência da embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, que gerou desconfiança dos países árabes e preocupação dos exportadores agrícolas no Brasil; na questão com a China. Isso responde a críticas cada vez mais crescentes que setores internos no Brasil e do PIB agrícola vinham fazendo em relação à política externa brasileira. É de se imaginar uma suavização desses pontos de atrito mais estridentes que o Brasil provocou.
O novo ministro terá um objetivo emergencial muito articulado com a questão das vacinas e a recuperação econômica. É uma tarefa imediata reconstruir pontes que foram implodidas.
Mas há um trabalho a ser feito de reconstrução da imagem brasileira em nível internacional. O senhor acha que há esse interesse e objetivo e o quanto dessa imagem está deteriorada?
O novo ministro terá um objetivo emergencial muito articulado com a questão das vacinas e a recuperação econômica. É uma tarefa imediata reconstruir pontes que foram implodidas. O Brasil está desgastado com as duas maiores potências do planeta, tanto com a China quanto EUA. E são dois produtores ou controladores dos insumos médicos para a solução da pandemia. Ou seja, a primeira tarefa é reconstruir essas pontes e normalizar o fluxo diplomático. Bolsonaro foi consumindo o patrimônio diplomático do Brasil. Tínhamos uma imagem no Exterior, um acervo de relações políticas, de contatos. Ele foi consumindo isso. As pessoas pensavam: "Brasil ainda é o Brasil, o Brasil é muito mais do que isso, é temporário". Ele (Bolsonaro) foi consumindo o patrimônio diplomático, ele torrou a poupança, mas não quer dizer que acabou completamente. Cumpre agora tentar retomar esse patrimônio diplomático para reconstruir essas pontes que foram sendo implodidas nos últimos dois anos a uma velocidade e em um grau destrutivo jamais visto nas últimas décadas.
Como está a imagem do Brasil nos organismos multilaterais?
A imagem está muito desgastada. É ali que tu também consegues construir uma série de articulações para defender seus interesses. Porque, sozinha, uma potência média enfraquecida como o Brasil consegue pouca coisa.
O que sobrou do capital diplomático brasileiro?
O Brasil ainda é, apesar desses dois anos queimando o capital diplomático, a oitava ou nona economia mundial, continua com 200 milhões de pessoas, ainda é uma mistura de potência regional com potência intermediária. A gente teve uma política externa menor do que o tamanho do nosso país no sistema internacional. Ainda temos a nossa condição de potência intermediária, que deve ser utilizada. A gente falhou muito na pandemia, eu já vinha alertando isso em entrevistas e artigos. A gente falhou como potência regional. O que deveríamos estar fazendo nessa condição: potência regional tem de estar cuidando e resguardando a região para si, construindo formas de articulação, organizando e liderando a sua própria região antes da covid-19 e durante. Fazemos fronteira com quase todos os países da América do Sul. Tínhamos de articular uma concertação regional tanto para combater a disseminação do vírus quanto para mitigar seus efeitos, em especial sobre a economia regional. A recuperação global passa por uma espécie de regionalização das cadeias globais de valor. O pessoal vai trocar um pouco o "lucro" por "segurança". Na questão da covid-19 ficou muito clara a questão de garantir a segurança em suprimentos. A recuperação da economia brasileira passa pela própria recuperação da economia regional e do Mercosul. O que fizemos nos últimos tempos: implodimos a Unasul, nos desgastamos com a Argentina e com a Venezuela naquela aventura de querer colocar Juan Guaidó como presidente, uma leitura equivocada inclusive do tamanho do poder de Nicolás Maduro, uma trapalhada tão grande que nos tirou da mesa de negociação. Estamos isolados na América do Sul. Como potência emergente, não deveria nos afastar dos fóruns multilaterais. Deveríamos estar engajados na busca de solução de consenso para a crise. Na Covax Facility (esforço da OMS para distribuir vacinas de forma equânime) que entramos tardiamente e na discussão das patentes dos medicamentos também nos afastamos dos países emergentes.
É nos fóruns multilaterais que potências emergentes, como o Brasil, conseguem ter mais voz?
Porque tu somas poder e consegue construir consenso e articulação. Não é o Brasil isoladamente, mas é o Brasil e mais 10 países intermediários, dá outro peso, outra dimensão. A chave era os Brics (bloco integrado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) para a questão da covid-19, era quase a reedição do IBAS (Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul), há 20 anos, quando se fez a discussão dos remédios retrovirais. A produção de insumos médicos está se deslocando para a China.
Três dos países produtores de insumos e vacina são dos Brics.
Nós nos afastamos dos Brics no contexto da pandemia. O Brasil como potência intermediária tem de estar inserido em múltiplos pontos nodais de cooperação. Fazendo ponte entre os países ricos e pobres. A ideia de redes de poder e atuando como ponte. A gente poderia estar agora discutindo a cooperação em saúde e das vacinas para a África inclusive. Ou seja, a gente não aproveitou todo esse patrimônio de relações. A cooperação de saúde com a África remonta há várias décadas. O resultado da política externa errada foi esse gosto amargo, quando se deram conta: "De onde vem o insumo?" Acharam que o IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) vinha do Reino Unido. Se deram conta de que que o IFA era produzido era na China. Sentiram esse gosto amargo, a partir de janeiro e fevereiro, quando todo mundo começou a vacinar, e o Brasil sem nenhuma dose de vacina. Era uma triste realidade de que o mundo girou e que nós continuamos parados. A diplomacia brasileira atuou nos últimos dois anos em um patamar muito abaixo tanto das nossas capacidades quanto das necessidades do Brasil. Ficamos consumindo esse capital diplomático, fragilizando a inserção internacional e entrando em um isolamento. O novo chanceler tem um trabalho grande pela frente, mesmo que seja apenas para fazer ajustes. Desejo a ele muita sorte.