Enquanto o mundo debate o que a máquina pode substituir, o sertão do Piauí ensina o que ela deve aprender: a voz do território. Lá, a transformação é silenciosa, mas profunda. Não é a tecnologia invadindo a escola; é a escola ensinando a tecnologia a falar com sotaque local.
Em 2025, o Piauí tornou-se o primeiro território das Américas a incluir o ensino obrigatório de inteligência artificial na educação básica, reconhecimento formalizado pela UNESCO. Foram mais de 120 mil estudantes alcançados e 800 professores formados na primeira etapa. O feito é inédito, mas o que o torna exemplar é a forma como o território guiou a técnica, e não o contrário.
Carolina Pereira, estudante do CETI Paulo Freire, resume com simplicidade o impacto da mudança:
— A IA será útil em qualquer profissão que eu escolher. Mas o importante é que me ajudou a enxergar novas possibilidades sem perder minhas raízes.
Nesse processo, os professores do Piauí cristalizaram quatro papéis que hoje reverberam nos quatro cantos do mundo:
- Curadores, ao selecionar ferramentas e conteúdos que dialogam com o currículo e a cultura local.
- Editores, ao apoiar estudantes no desenvolvimento de aplicativos com dados de suas comunidades.
- Coreógrafos, ao orquestrar tempos de estudo coletivo e individual.
- Mentores, ao orientar jovens como Carolina a projetar futuros antes inimagináveis.
Essa preocupação com a língua-mãe e a cultura não é exclusiva do Piauí. No Alto Rio Negro, o Projeto Yẽgatu Digital segue caminho semelhante. Professores indígenas transformaram narrativas na língua nheengatu em glossários e materiais digitais, garantindo que a língua avance com seus filhos e netos.
Essa costura fina entre raízes e inovação, longe de ser uma exceção brasileira, revela-se um princípio fértil em solos culturais dos mais diversos. No Mali, professores e estudantes usaram ferramentas como ChatGPT e DALL·E para criar 180 livros infantis em bambara, que é uma língua de tradição oral com poucos registros escritos. O processo envolveu toda a comunidade: jovens recolheram histórias dos anciãos, a IA ajudou a transformá-las em texto e imagem, e rodas de leitura validaram o resultado, preservando o respeito aos costumes locais.
— Cada história em bambara que uma criança lê é como uma voz que retorna ao coro da comunidade — conta um educador do projeto RobotsMali.
No Quênia, as luvas inteligentes Sign-IO traduzem língua de sinais em voz com 93% de precisão, permitindo que estudantes surdos de escolas rurais ganhem autonomia e inclusão. Em países como Benin, Camarões e República Democrática do Congo, o projeto STEPS usou IA para adaptar conteúdos às línguas nacionais, com professores atuando como curadores culturais e mentores da aprendizagem local. Essa visão ganhou respaldo continental: em 2024, a União Africana incluiu a educação como prioridade na construção de uma IA ética, inclusiva e culturalmente pertinente.
O pensador Edgar Morin lembra que educar é religar saberes fragmentados. No Piauí, no Alto Rio Negro e em tantas experiências africanas, a inteligência artificial aparece como enxerto; renova sem apagar e fortalece sem desenraizar.
A lição final é clara: o professor ampliado não importa soluções prontas. Ele cultiva futuros locais com ferramentas globais. Guardião da memória e arquiteto do porvir, ele ensina que toda inteligência — humana ou artificial — só floresce quando honra o chão onde pisa.
P.S.: Esta coluna faz parte das reflexões do livro O Professor Ampliado, que será lançado na Feira do Livro de Porto Alegre. A versão digital está aberta ao mundo, de forma gratuita, viva e compartilhável, neste link.

