
Quem não tem colírio, usa óculos escuros. O verso de Raul Seixas serve ao Brasil de 2025. Enquanto a inteligência artificial (IA) redesenha o trabalho global, agimos como se fosse uma hype qualquer. Nos falta o colírio, planejamento, políticas públicas robustas, coragem… E nos sobram óculos escuros: paliativos, discursos vazios e a perigosa ilusão de uma adaptação lenta e gentil.
Essa ruptura é um “cisne vermelho”, nas palavras de Sílvio Meira: transformação profunda, irreversível, invisível aos que não querem ver. No Brasil, o cisne não pousou com pompa no Congresso. Chegou de Havaianas, pela porta dos fundos, e já reorganiza a casa. Está controlando as emendas PIX, revisando contratos e fazendo atendimentos pelo WhatsApp. Quase ninguém notou.
Atendido por robô? Caixas de banco virando totens? Currículo descartado por algoritmo? A IA é invisível e está em todos os lugares. Projeções indicam 12 milhões de empregos formais em risco no país (nas áreas administrativas, jurídicas, saúde, finanças). Nas escolas, continuamos ensinando a usar o Office. Tentamos resolver 2030 com ferramentas de 2005.
O mantra oficial é “requalificar”. Mas como, sem internet estável? Como preparar jovens para o futuro se 70% dos estudantes vulneráveis terminam o Ensino Médio sem acesso tecnológico significativo? Quem controla os algoritmos, controla quem trabalha, consome, sobrevive. E o Brasil… segue assistindo da arquibancada.
Bauman falou de tempos líquidos, onde tudo se desfaz rápido. No Brasil, o copo já nasce furado. A IA reconfigura o poder, enquanto políticos discutem ética abstrata e executivos buscam eficiência sem transição justa. Raul cantava: Eu devia estar contente porque tenho um emprego.... Essa certeza vai escorrendo pelo ralo, não só para os menos escolarizados.
De óculos escuros, o país evita o clarão. O Projeto de Lei 210 de 2024 sobre IA foca na ética, mas pouco discute o impacto real no trabalho e na vida das pessoas. Formandos de 2025 sairão do ensino médio sem discussão séria sobre IA. E, ao contrário de nós, ela não tira férias, não bate ponto, e não espera.
Mas nem tudo é distopia. A Havaiana fura, mas o pé brasileiro, calejado e criativo, segue firme. Em um projeto do NEES, da Universidade Federal de Alagoas, professores usam IA desplugada para personalizar o ensino.
Só precisam de um celular conectado. Em São Paulo, um influenciador gerado por IA usa a linguagem da quebrada para dar dicas, engajar jovens, e mostrar como dá para gerar renda e facilitar o dia a dia. Nos chamados “quilombos digitais”, uma transformação acontece com afeto, imaginação e inteligência distribuída.
A IA pode ter sotaque gringo, mas com a nossa ginga, pode aprender a dançar forró, recitar cordel, virar meme. Pode, quem sabe, virar aliada fundamental da educação, da arte e da justiça social. Pode ser… se arregaçarmos as mangas e entrarmos no jogo.
O cisne vermelho voa. As Havaianas estalam no chão quente da realidade. Até quando vamos continuar de óculos escuros? Ou vamos disputar o código, o currículo, e o controle? Zezé Di Camargo & Luciano cantaram: É o amor que mexe com minha cabeça.... Mas hoje, amigo, é o algoritmo que mexe com tudo.