
Toni Garrido decidiu mudar a letra de Girassol, um dos maiores sucessos do Cidade Negra. Se antes ele cantava que "pra ser homem tem que ter a grandeza de um menino, de um menino", agora prefere dizer que "tem que ter a grandeza de uma menina, de uma mulher".
Toni explicou que o verso antigo vinha lhe soando machista e, honestamente, não quero aqui pensar que ele censurou a própria música. Minha impressão é que lançou sobre ela um novo olhar, o que é legítimo: o artista tem todo o direito de reencontrar a própria obra e repintá-la com as tintas de outro tempo. Mas, às vezes, o zelo com a mensagem parece tão grande que começa a desfigurar o que a própria mensagem tinha a dizer.
O verso original do Cidade Negra trazia um sentido bonito, quase pueril: ser homem de verdade exige preservar uma certa pureza de criança – a delicadeza, a curiosidade, o espanto. "Menino", ali, não tinha gênero, tinha ternura. A metáfora era sobre humanidade, não sobre masculinidade. Alterá-la para "menina" e "mulher" soa bem-intencionado, mas parece mudar o eixo da canção: transforma o que era sobre infância em um gesto de reparação identitária. E aí, quando a correção passa a ocupar o lugar do significado, a poesia deixa de comover – e começa a obedecer.
Existem demandas novas que merecem atenção, claro: certas escolhas linguísticas carregam histórias de exclusão, ajustar o vocabulário é um exercício saudável, mas a sensibilidade deve servir para ampliar o mundo, não para estreitá-lo. Quando cada palavra vira uma armadilha, o pensamento começa a andar de muletas. Quando cada verso exige um manual de conduta, vamos nos afastando do que a arte tem de mais libertador: as interpretações, o risco, a surpresa. Poesia não é ata de assembleia – não tem que ser precisa, nem literal, nem corrigida. Ela tem que ser autêntica.
Mas, por outro lado, talvez seja bonito aceitar que existam duas versões da mesma música. Toni Garrido pode cantar a nova, e cada um de nós pode continuar ouvindo a antiga. Porque uma canção não pertence apenas a quem a compôs, mas também a quem a viveu. Por mais que mudem as palavras, há sentidos que não se apagam: ficam guardados em quem ouviu aquele "menino" e enxergou ali não um gênero, mas um modo de ser humano– mais aberto, mais livre, menos vigiado.





