David Coimbra
Não esquecerei das antigas noites de sexta nas redações de jornal. Naquele tempo, a redação era um lugar especialíssimo, mistura de museu, biblioteca e bordel. Às sextas, havia o que chamávamos de "pescoção": produzíamos as edições de sábado e domingo, trabalho dobrado, avançando madrugada afora.Uma vez, escrevi 16 matérias numa sexta, sabe lá o que é isso? Na época, não existia internet nem celular, e fazer matéria por telefone era desabonador. Você entregava o texto e o editor olhava de viés:
_ Isso aqui você fez por telefone?
Então, você pegava o carro, ia a todos os lugares, falava com todas as pessoas, voltava para escrever e só saía da redação às 4h da manhã. Para casa?
De jeito nenhum.
Você TINHA de tomar uma cerveja.Felizmente, muitos bares permaneciam abertos até o amanhecer. Era quando as coisas importantes aconteciam. Quantos casamentos feneceram, floresceram ou rebrotaram diante de nossos olhos intumescidos, quantos amigos brigaram e reataram, quantas teorias geniais formulamos para salvar o Brasil...Pensando nisso, nas teorias geniais, sinto a necessidade de falar de um amigo que já se foi. O Ricardo Carle. Saíamos todas as sextas-feiras, e o Ricardo sempre começava quieto, só me ouvindo matraquear. Lá pela antepenúltima esquina da madrugada, depois de muitos aditivos, ele se tornava loquaz. E, na última esquina, ele volta e meia se transformava num provocador profissional. Escolhia alguém que estivesse debulhando alguma tese e o contrariava. Se o cara fosse de direita, o Ricardo virava o Prestes; se fosse de esquerda, o Ricardo virava o Roberto Campos. Em alguns minutos, o outro fugia do bar ou atirava uma cadeira na cabeça do Ricardo ou o abraçava, às gargalhadas.Fico imaginando se o Ricardo Carle vivesse em Porto Alegre hoje em dia. Como ia se divertir. Mas talvez... Talvez não. Talvez o mundo não comporte mais homens como o Ricardo Carle. Talvez o mundo não comporte mais aquelas antigas sextas, de antigas redações de jornal. O mundo de hoje é mais sério, as redações também. Homens como o Ricardo Carle não suportariam tanta seriedade numa sexta-feira.
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