Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Ir à praia é uma coisa tão comum que a gente tende a pensar que sempre foi assim, que as pessoas sempre gostaram do sol e do mar. Ledo engano. Veraneio à beira-mar é um costume relativamente recente, como mostra o historiador francês Alain Corbin num belo livro intitulado Le territoire du vide (O território do vazio). O título da edição inglesa é ainda mais sugestivo: The Lure of the Sea, ou O Apelo do Mar. Corbin faz a chamada "História das Mentalidades", uma invenção francesa que conseguiu transformar insípidos relatos em narrativas tão fascinantes quanto a ficção, e que é por isso muito criticada. Críticas à parte, o livro é muito esclarecedor e por vezes muito curioso.
Mar é uma coisa fascinante e misteriosa, capaz de atrair e assustar ao mesmo tempo. Na Bíblia, lemos que uma das primeiras providências de Deus foi separar a terra das águas. O lugar do homem é na terra, de início no Jardim do Éden, que, como resort, era uma maravilha, mas ficava a uma prudente distância do oceano. Mais tarde, quando o Senhor quer punir a humanidade, é ao dilúvio - à água - que recorre. Daí por diante a imaginação popular povoaria os oceanos de monstros terríveis, tipo Leviatã. Para os primeiros cristãos, a Igreja era a nau segura na qual estariam a salvo do naufrágio espiritual. Naufrágio era, aliás, um tema comum para artistas e poetas. Em Shakespeare - autor de uma peça chamada A Tempestade - as catástrofes marinhas são freqüentes, e Hamlet menciona em seu monólogo o "sea of troubles", o mar dos revezes que é a nossa vida. Com estas imagens em mente, os primeiros navegadores tinham, portanto, de se munir de muita coragem antes de enfrentar o mar alto em suas frágeis embarcações. Entre os portugueses era costume mergulhar relíquias de santos nas águas, numa tentativa de apaziguá-las. E as carrancas de proa mostravam que o homem também podia fazer cara feia para o mar. Enfim, uma relação tempestuosa, para dizer o mínimo.
De repente, contudo, descobriu-se que o mar não era tão ruim assim. Para começar, cruzando o mar chegava-se ao Novo Mundo, um lugar de riquezas naturais, de luxuriantes florestas e de belas praias na qual os nativos (e as nativas) se banhavam nus. A alegria deles contrastava com a melancolia européia, assim como sua pele bronzeada contrastava com a palidez do Velho Mundo.
Em meados do século 18, os europeus começam a ir à praia. Não vão em busca de diversão, mas sim de curas, análogas àquelas proporcionadas pelas águas termais. Neste sentido, foi de enorme influência o livro de Robert Burton A Anatomia da Melancolia. A pessoa melancólica, dizia Burton, deve procurar um lugar de horizontes amplos, em que a paisagem tenha movimento, e onde o exercício físico seja possível. A praia, o mar com suas ondas, correspondiam inteiramente a esta descrição. O banho de mar era particularmente importante, mais importante que o sol.
O banho de mar estimularia o organismo. Em primeiro lugar, por causa da água fria. Água fria, numa determinada época, era considerada um purificador antídoto contra uma série de males, entre eles a masturbação na adolescência. Na sua História do Banho Frio, publicada no início do século 18, diz o médico inglês Floyer: "O banho frio causa calafrios, e isto, junto com o terror e a surpresa, contrai os condutos nervosos." Em outras palavras: a pessoa ficava alerta, ainda que tensa, e pronta para a ação. Isto, na economia de mercado que então se consolidava, era a fórmula para o sucesso, assim como a melancolia era o caminho certo para o fracasso. O banho frio era o Prozac da época.
Em segundo lugar, o benéfico golpear das ondas. De novo, tratava-se de chacoalhar o corpo, de agitá-lo, de despertá-lo através de uma violência controlada, sem maiores riscos. Isto tinha de ser feito de maneira gradual. Entre os colonos alemães no Rio Grande do Sul havia a fórmula das nove ondas: começava-se com uma onda por banho, até chegar ao número nove. Mergulhar era uma coisa boa, sobretudo se dava a sensação de sufocação. Nadar era igualmente positivo.
As pessoas iam à praia por causa do mar. Areia era considerada uma coisa desagradável. O sol, idem. As pessoas evitavam o sol, não pelo temor ao câncer, mas porque pele escura era coisa de classes (ou povos) inferiores.
A praia custou a entrar na vida das pessoas. Mas agora que entrou, pelo jeito não sai mais. Transformou-se num estilo de vida, com diversão e tudo - o Planeta Atlântida que o diga. Praia é festa. Desde que um ducto da Petrobrás não se rompa sob o mar.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
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