
Um artigo publicado em junho pela economista Zeina Latif no jornal O Globo (clique aqui para ler) chamou a atenção de muitos gaúchos. A sócia-diretora da Gibraltar Consulting Economia afirma que o Rio Grande do Sul "apresenta algumas deficiências superlativas em relação ao restante do Brasil e sua economia ficou para trás". Não é agradável de ler, assim como outro diagnóstico recente de outra economista, Juliana Trece, mas precisa fazer pensar. Como contribuição, a coluna ouviu a economista para esclarecer os motivos do artigo e aprofundar um debate que, segundo Zeina, exige medidas de curto prazo.
Por que você escreveu o artigo?
Estou sempre olhando dados, inclusive regionais, por causa do meu trabalho, tanto por demandas de clientes quanto por interesse meu. Já escrevi sobre o Rio de Janeiro, que também tem saída muito forte de pessoas, com impacto no crescimento. Lá, há uma razão comum ao RS, a fiscal, mas também tem a violência. E até por causa da COP30, escrevi outro sobre o Pará, que cresce muito com atividade extrativa, sem melhora de indicadores sociais nem crescimento disseminado.
Outro objetivo é apontar o RS como possível futuro para o Brasil?
Sim, é uma observação com cabeça de economista. Quando eu vou para o Rio Grande do Sul, até porque meu marido tem família aí, fico olhando para o que funciona, o que não funciona. Para lembrar, quando começaram as reformas estruturais no RS, também fiz questão de elogiar e sugeri que o exemplo fosse seguido. É só para deixar claro que não tem nenhuma motivação senão a curiosidade do economista.
Ter ficado para trás não quer dizer que o RS não possa voltar a avançar, certo?
Sim, e acho que seria injusto dizer que não tem esforço do governo do Estado, principalmente na questão fiscal. No artigo, levanto duas possibilidades para essa situação. Uma é a capacidade de investimento do RS muito comprometida pela crise fiscal, quando enfrentamos novos desafios de políticas públicas. Não só o governo federal, também os entes subnacionais precisam reforçar seus orçamentos para dar conta de demandas ambientais. Quando houve a triste enchente no RS, o socorro precisou ser fora do orçamento. Fica claro que o Estado precisa ter grau de manobra para lidar com eventos climáticos que estão mais frequentes.
O principal motivo é o problema fiscal, com alto endividamento?
Sim, mas dívida elevada, São Paulo também. O problema é que, quando o Tesouro Nacional faz a análise do crédito (grau de solvência, relação entre receitas e despesa correntes e situação de caixa), o RS tem a pior nota, D (de "default, ou calote). E está em regime de recuperação fiscal (RRF). O que esse ranking avalia é a capacidade de honrar compromissos. Essa situação foi uma construção, não foi da noite para o dia. Houve uma sequência de governos que não trataram bem as contas públicas. E a questão demográfica agrava o quadro. O Estado cresce menos, a arrecadação fica menor, a saída de pessoas impacta arrecadação e crescimento. Vira uma bola de neve. Se não arrumar as finanças públicas, vai colher, cedo ou tarde, as consequências. Esse é um debate que chegou aos Estados Unidos, que hoje o mundo todo financia, mas mas já começa a querer diversificar investimentos (em outros países e moedas).
Outro motivo que aponta para o atraso do RS é o excesso de judicialização. Identifica a origem desse fenômeno?
Pesquisei bastante sobre a origem da maior insegurança jurídica e a elevada judicialização no RS, mas não consegui identificar. Discutem-se questões históricas, mas não há associação direta. Seria saudável entender esses processos para que se faça o diálogo com o Judiciário, com o Estado, que muitas vezes acaba sendo litigante. Esse debate precisa ser feito para compreender se há ou não raízes históricas. Ajuda, afinal a gente tem novas gerações, que podem renovar esse ambiente.
Você chama atenção para maior proporção do Judiciário em relação à população, tem justificativa?
Uma coisa é decorrência da outra. A sociedade demanda e as instituições reagem. Mas não teve inteligência artificial que me ajudasse a encontrar respostas, então seria importante aprofundar esse debate no Estado. Levantei essas duas hipóteses (crise fiscal e judicialização como motivos para o Estado ter "ficado para trás") porque são temas consolidados na literatura econômica. Tem economista candidato ao Nobel em economia, Ed Glaeser, que diz que se aprende que não tem almoço grátis, mas aponta a segurança jurídica como almoço grátis. Ter regras fortes da segurança, reduz a incerteza legal, protege negócios por esse aspecto, reduz complexidade de marcos regulatórios, é um bom caminho até para conter corrupção. Ele sustenta que acertar marcos jurídicos e garantir segurança jurídica é transformador.
O "descolamento" que vê em relação a Santa Catarina e Paraná é resultado de envelhecimento da população, crise fiscal e judicialização ou tem outros componentes?
O envelhecimento é fruto de fluxos migratórios, os jovens vão embora. Não identifiquei dados de taxa de fertilidade no RS ser menor. Por que os jovens vão embora? Por que não estão empreendendo no RS? Santa Catarina se tornou polo de inovação, mas é preciso investigar do ponto de vista de segurança jurídica. E tem outro fator. Passei alguns meses como secretária de Desenvolvimento de São Paulo e o meu Estado perdeu muito para SC pela guerra fiscal. Parte desse crescimento ocorreu por incentivo fiscal, que não é a melhor forma. Na época que trabalhei na Secretaria de Desenvolvimento Econômico em São Paulo, foram alguns meses, Santa Catarina era a minha dor de cabeça. Mas no RS se vê um círculo vicioso de um Estado que não consegue atrair jovens empreendedores, perde, e isso acaba realimentando outros problemas. Essa é a reflexão.
O que os gaúchos precisam fazer para suprir esse atraso?
Tenho muita confiança na capacidade de debate público. Isso que estamos aqui fazendo, discutindo. É preciso ter diagnóstico, as universidades têm grandes pesquisadores e podem se aprofundar nesses temas, trazer o judiciário para o debate. O RS é um Estado com capital humano muito alto. É uma sociedade com alto grau de coesão, tem matéria-prima para isso. Tem gente que vai discordar, dizer que não é nada disso. Certo, vamos olhar os números, aprofundar essas pesquisas. Ter diagnóstico é a primeira coisa. Precisa ter diagnóstico até para reduzir o efeito prejudicial de polarizações que dificultam esse debate. Vejo plena capacidade de superar. No Pará, os temas de debate são muito mais complexos, é grilagem, ilegalidade, crime na exploração de ouro, economia pouco diversificada.
Qual é o grau de urgência desse problema, há necessidade de medidas de curto prazo?
Olhando os números, o quanto o Estado descolou dos vizinhos, é bem urgente. É urgente recuperar a capacidade de o RS investir, por exemplo. É preciso virar a chave, ir para o ciclo virtuoso e poder realmente atrair mais investimentos e conter o fluxo de pessoas. No fundo, é a mesma história do Brasil. Quantos talentos o Brasil perde? Precisa ter medidas concretas de curto prazo. Por exemplo, nos próximos quatro anos fazer revisões de alguns marcos, em diálogo com o Judiciário. É preciso ver o que acontece no resto do país, entender a experiência de outros Estados, consolidar jurisprudências, porque isso é um problema. É preciso ter um plano de voo, mas já com ações de curto prazo também, para estancar esse movimento.
Falar do RS é falar do Brasil, que também passa por um impasse fiscal. Qual é seu diagnóstico?
Veja, há falhas de todos os lados. Não tem mocinho ou bandido. Claro que a liderança de uma agenda de ajuste fiscal tem que ser do Executivo, que, na minha visão, partiu de diagnósticos equivocados da questão fiscal, na linha de que se a gente recuperar a arrecadação, está resolvido. Não é assim, porque os gastos crescem automaticamente. Por mais que o país tenha muitas distorções tributárias, a sociedade reage, os grupos reagem. Houve iniciativas do governo que, na minha opinião, foram na direção correta de proporcionar isonomia em investimentos. Mas faltou a contrapartida de contenção de despesas. A credibilidade é muito importante, e o governo errou. Mas é claro que o Congresso é sócio, seja por emenda parlamentar ou barganha política.
É parte do problema e tem de fazer parte da solução?
Aprovou a PEC da transição que feria a lei de responsabilidade fiscal, criando despesa sem apontar de onde viria a receita, mesmo com alertas da Instituição Fiscal Independente, de Tribunal de Contas da União, que são órgãos ligados ao Senado. Agora, não tem como também fugir das suas responsabilidades. Tem um país em que não dá para fazer shutdown, imagina a pessoa vai para o posto de saúde e não tem o serviço. É preciso encontrar uma solução, a política tem que dar conta.
Ao menos, poucas vezes se discutiu tanto o assunto, isso ajuda?
É uma janela de oportunidade. É preciso encontrar soluções, mesmo que não sejam ideais, sabemos que não vai haver uma grande reforma estrutural. Por exemplo, vamos, por um tempo, aumentar IOF. Ou adotar outra medida. Quando se fala em credibilidade fiscal, é uma construção. Mesmo se houver renovação na política, os problemas fiscais estão aí e vão precisar do apoio da oposição para resolver. Se criar clima muito beligerante, polarizado, isso vai ser dor de cabeça para qualquer um que sentar naquela cadeira. A política precisa demonstrar que temos maturidade para discutir os temas fiscais, para encontrar soluções que sejam equilibradas, que sejam justas. É preciso que a política dê conta disso, qualquer que seja o presidente ou o partido de plantão.