
Ex-secretário da Fazenda do Estado que marcou sua gestão por conseguir sucessivos resultados de déficit zero no Estado, o gaúcho Aod Cunha é uma voz relevante no debate nacional sobre as contas públicas. Nesta entrevista, aponta caminhos, admite não ter todas as respostas e sugere que a sociedade brasileira amadureça para não agir apenas em momentos de crise aguda, como mostra o passado recente.
Como chegamos a esse nível de batalha em torno do orçamento?
A história é longa, e não é só deste governo. Desde a Constituição de 1988, o que vem acontecendo é que a despesa pública cresce a uma velocidade maior do que a do aumento da arrecadação, que, nas últimas décadas, já não é pequeno. Saímos de uma carga tributária de cerca de 23% no início da década de 1990, para algo em torno de 34% do PIB. A forma de lidar foi criar regras: superávit primário, Lei de Responsabilidade Fiscal, teto de gastos, arcabouço fiscal, que também não está dando conta. Existe a ideia geral de que sempre se pode melhorar o bem-estar da sociedade só aumentando o gasto público. Está faltando olhar também para a qualidade do gasto público.
Fazer ajuste pelo lado da arrecadação é um dos componentes da crise atual?
Sim, só que agora estamos chegando ao limite. A sociedade, de diferentes formas, no setor privado e no Congresso, começa a reagir de forma mais dura, ao menos no tema de aumento de impostos. O problema é que, como não há contenção nos gastos, sejam diretos, sejam de renúncias fiscais, a conta não fecha. Então, temos um impasse. É um modelo que não fecha mais: a sociedade resiste ao aumento adicional de carga tributária, mas continua demandando mais gastos públicos.
As renúncias aumentaram, entre 2005 e 2015, de em torno de 2% do PIB para quase 5%, e se mantiveram nesse patamar.
Há muita dificuldade para cortar gastos para além do chamado "andar de baixo", ou seja, dos mais pobres?
Há, sim. Temos aplicações financeiras que ainda são isentas muito parecidas com outras que não são. Outro exemplo vem da reforma tributária. Vamos ter alíquota média maior do IVA porque, no meio da discussão, vários grupos de interesse foram ao Congresso e reivindicaram isenções. Sempre há bons argumentos para justificar. O problema é que, quando se faz muitas exceções para grupos específicos, a conta não fecha. Sempre que se privilegia um grupo, outra parte da população vai pagar mais.
É possível fazer uma separação por qualidade do gasto tributário?
Sim, precisamos ter avaliação constante do gasto público. Tanto para saúde, educação, segurança quanto para o gasto tributário. É preciso avaliar que tipo de incentivo se dá e se é eficiente. As renúncias aumentaram, entre 2005 e 2015, de em torno de 2% do PIB para quase 5%, e se mantiveram nesse patamar. Boa parte deve ter retorno em geração de renda e emprego. Mas há um tema mais polêmico: a Zona Franca de Manaus. Continua com renúncia de recursos que poderiam ir para educação, saúde e segurança, para ter, por exemplo, fábrica de refrigerante no meio da floresta. O (economista) Marcos Lisboa usa este exemplo: produzimos autopeças para motocicletas no Sul e Sudeste que embarcam no porto de Santos, vão até o de Belém, atravessam a Amazônia para serem montadas na Zona Franca, depois voltam pelo mesmo trajeto. É lógico que a região vai se mobilizar e dizer que gera emprego. Precisamos ver o que funciona e o que não, porque o orçamento público é escasso.
É preciso mostrar que a sociedade está pagando um preço alto por abrir essas exceções.
A Zona Franca tem "bancada" no Congresso. Como lidar com os lobbies que impedem revisão desse gasto?
É uma ótima pergunta. Em artigo recente, tentei mostrar o que poderia ser um caminho, até se chegar a uma estrutura mais robusta de avaliação de política pública, de contenção maior desses grupos de interesse. Existem em qualquer lugar do mundo, mas no Brasil o Congresso parece muito permeável, facilmente dominado por esses grupos. A primeira questão é a transparência do debate público, é preciso falar mais sobre os programas, sobre o que funciona, o que não, o que beneficia alguém, mas prejudica outra parte. Um desses temas é o dos supersalários. É de difícil enfrentamento, mas é preciso discutir. Faz sentido haver remunerações de R$ 300 mil a R$ 600 mil em um país com problema fiscal? E no setor privado, existem incentivos fiscais que não parecem ser mais justificados. É preciso mostrar que a sociedade está pagando um preço alto por abrir essas exceções.
A sociedade deveria cobrar de seus representantes no Congresso?
Sem liderança política que aceite enfrentar essa discussão, fica difícil. O próprio presidente da Câmara defende reforma administrativa e, em seguida, sai um arranjo novo para que os deputados possam incorporar a aposentadoria e ter um salário maior que o teto. Como essa liderança do Congresso vai colocar um limite no superteto, se está defendendo para si próprio. É preciso melhorar a qualidade da liderança política, não tem saída.
O caminho é enfrentar as distorções mais visíveis, os incentivos fiscais distorcivos, o regime especial dos militares. E à frente, rever seguridade social e regime de previdência.
E como abordar as emendas parlamentares, que saíram de R$ 6 bilhões em 2019 para R$ 50 bilhões neste ano?
Sim, são pertinentes as críticas ao Executivo pelo ímpeto recente de expansão de gastos, mas tem muita responsabilidade do Congresso. O Legislativo tem conseguido conter aumento de impostos, mas também tem proposto aumento de gasto. Parte é do processo democrático, o problema é a formar como é feita. Há uma série de gastos que não se sabe para onde vai, e muitas vezes não se quer que saiba para onde vai. E não é pouco, são R$ 50 bilhões. Se somar, por exemplo, com a aposentadoria dos militares, que custa R$ 50 bilhões, temos R$ 100 bilhões que poderiam ir para escolas, saúde, infraestrutura. O RS, na última reforma da previdência, igualou o teto da aposentadoria dos militares, no caso, Brigada Militar, ao dos civis.
Nesse momento em que se discute estrangulamento e shutdown, o que que se pode fazer de concreto para evitar essas situações dramáticas?
Não tenho solução fácil para isso, o que me preocupa mais é quando se olha mais tempo à frente, em cinco ou 10 anos. Temos esse conjunto grande de distorções, como previdência militar, incentivos fiscais ineficientes do setor privado, emendas parlamentares. E uma tendência estrutural impactante que é a transição demográfica, o envelhecimento mais rápido da população que está dado, não vai mudar, vamos continuar tendo déficits crescentes da previdência. É uma discussão política difícil, mas vai precisar ser feita. O caminho é enfrentar as distorções mais visíveis, os incentivos fiscais distorcivos, o regime especial dos militares. E à frente, rever seguridade social e regime de previdência.
Precisaremos de uma nova reforma?
Vamos precisar de uma combinação de ações. Em um painel de 200 anos para 200 países no banco de dados da ONU, o ritmo de envelhecimento no Brasil é a sexta transição mais rápida da história. Muito provavelmente, como ocorre na Europa, será preciso rediscutir aumento na idade mínima. E ter um modelo dinâmico de reforma de previdência, ou seja, à medida que a idade média da população avança, vão ocorrrendo pequenos ajustes.
Não será difícil, já que a última enfrentou resistências?
Sim, vai ser difícil, mas é um fato. Vamos enfrentar essa dificuldade. E o modelo de parâmetros dinâmicos é necessário para não precisar voltar, 10, 15 ou 20 anos depois, com nova discussão.
A alternativa seria elevar a carga tributária para sustentar esse quadro?
Quando a carga tributária estava abaixo de 30%, era possível, mas agora, com 34% e 40% em alguns casos, fica difícil. O Brasil tem a maior carga em relação ao PIB entre os 28 países de América Latina. Para nosso nível de renda, é muito alta. Se aumentar, começa a inviabilizar investimentos, crescimento da economia, geração de empregos e a própria arrecadação de impostos.
No Brasil, grandes problemas só costumam ser resolvidos por crises. Estamos de novo nessa situação?
Tivemos três momentos clássicos. A crise da Ásia, em 1998, 1999, fez surgir o "tripé macroeconômico", como superávit primário, câmbio flutuante e meta de inflação. Depois, às vésperas do primeiro governo Lula, com temor de desarranjo na economia, foi elevada a meta de superávit anterior. E em 2015/2016, com explosão de déficit, PIB caindo, recessão, veio o teto de gastos. O problema é que isso custa muito para o país. Mas se a trajetória fiscal se mantiver sem solução, com juros altos por muito tempo, vai afetar o investimento privado, a economia vai cair. Deveríamos amadurecer como sociedade, para não agir só em crise aguda, que custa muito para todos.
O custo é por perda de emprego, renda, sobrevivência de empresas?
Sim, e sempre afeta mais duramente aqueles que mais precisam, as pessoas de renda mais baixa, quem está dependendo do emprego para sustentar a família. Já temos um longo aprendizado, deveríamos olhar para trás e não colocar a culpa nesse ou naquele governo, mas ver que há um problema de sociedade. A esperança é de que não precisemos chegar de novo a uma crise aguda para achar a solução.