
Fundadora e diretora do Netlab, o Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Marie Santini desenvolve pesquisa, ensino e atividades de extensão entre universidade e sociedade civil sobre desinformação. É pesquisadora-membro da rede europeia VOX-Pol Network of Excellence, financiada pelo Programa da União Europeia 7 (FP7) focado em prevalência, contornos e impactos do extremismo político online violento e, nesse papel, acompanha uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que pode quebrar a blindagem das big techs.
Por que a desinformação é um fenômeno econômico?
Começa na forma com que as big techs se estruturaram há 20 anos. São empresas de tecnologia que nasceram no Vale do Silício com modelo de startup, mais ágil, que permitia desenvolver tecnologia sem burocracia e travas. Eram jovens criativos, seguindo um pouco a aura de Steve Jobs, e avançaram fazendo a sociedade acreditar que qualquer tipo de regulamentação poderia impedir a inovação. Por isso, alegavam que não poderiam ser reguladas, porque a tecnologia libertaria a sociedade de trabalhos manuais e precários, e que democratizaria o conhecimento. Levaria informação e conhecimento de forma gratuita, conectando pessoas sem restrições geográficas, econômicas ou linguísticas.
Foi um discurso eficaz, não?
Sim, convenceram governos e sociedade de que não deveriam ser reguladas. A partir de 2014, 2015, começamos a ver o fenômeno da desinformação. O grande laboratório foi a política, até porque é um mercado muito específico devidos aos períodos eleitorais. É um momento em que dá para fazer vários testes que não seriam possíveis em outros mercados, porque se faz uma campanha e depois vê quem ganha. Em 2016, vimos a eleição de Donald Trump e a aprovação do Brexit. Foi quando o mundo percebeu que a desinformação estava sendo instrumentalizada para fins políticos.
O que mudou?
Um momento importante para a compreensão dos mecanismos foi o Cambridge Analytica, quando vaza a informação de que essa empresa usava os dados dos usuários por meio dos anúncios, para distribuir publicidade de forma microsegmentada para eleitores do Trump, e isso foi um escândalo global. O mundo acorda para duas ideias. Uma, de que a desinformação era um problema sistêmico e não tinha mecanismos de controle porque não havia regulamentação, nem transparência, nem responsabilidade. A outra foi a de que o modelo de negócios dessas empresas estava claro e amadurecido, e era publicidade. A Meta, por exemplo, tem 99% de seu faturamento com publicidade.
Mas outro tipo de publicidade?
São empresas de publicidade que usam a vigilância e os dados sensíveis dos usuários, tanto pessoais como comportamentais, para distribuir anúncios personalizados. Nesse momento, começa a ficar claro o problema que está por vir, mas ainda há uma crença de que a desinformação está a serviço de ideologia, de estratégias políticas.
As big techs ganham dinheiro tanto com a informação legítima quanto com a ilegítima, no mercado formal, no informal e no ilegal.
E não é?
Não, ajudou a consolidar uma indústria que ganha muito dinheiro, de todas as formas. Com desinformação, o custo de produção – que na indústria da informação é alto, porque precisa ter qualidade, checar – é quase nulo. Não tem compromisso com nada, não tem responsabilidade, usa inteligência artificial, copia conteúdo, distorce e vende tudo pelo mesmo valor que a informação. É um mercado infinitamente mais lucrativo e que avançou nessa última década, sem regulamentação. As big techs ganham dinheiro tanto com a informação legítima quanto com a ilegítima, no mercado formal, no informal e no ilegal. Ganham dinheiro com absolutamente tudo.
As tentativas de algum tipo de regulação são acusadas de "censura". Faz sentido?
Não, na verdade o que está acontecendo é uma inversão da narrativa. Hoje as plataformas são as grandes censuradoras, porque moderam o conteúdo sem qualquer transparência. A liberdade de expressão que existe é só das big techs, de mais ninguém, porque todo mundo está suscetível às decisões e às vontades dessas plataformas. Ou seja, se uma pessoa tiver um conteúdo que a difama, não tem para quem recorrer. Só à Justiça, que vai demorar anos, e até lá a reputação foi embora. E se uma pessoa tiver uma conta, tiver uma página e, por um motivo que desconhece, for retirada ou alvo de moderação, também não tem a quem recorrer. Será censurada. E a plataforma não responde por isso e não deve satisfação à sociedade nem a essa pessoa sobre isso. A censura que existe hoje é 100% da plataforma. Nós não sabemos o que acontece ali dentro. E o artigo 19, o que está sendo discutido é a inconstitucionalidade desse artigo, porque ele foi criado num momento onde as plataformas de redes sociais não eram uma realidade.
Como vê o tema julgado pelo STF?
São as plataformas que decidem qual é a visibilidade que será dada, quais são os conteúdos que serão vistos e quais não serão vistos. Diante disso, esse artigo 19 (do Marco Legal da Internet) se torna realmente inconstitucional, porque libera essas empresas de uma responsabilidade muito séria. Esse artigo, hoje, dá imunidade absoluta, seja para conteúdo comercial ou orgânico. Elas não se responsabilizam pelo dano, só se descumprirem ação judicial. Isso é esdrúxulo em uma sociedade plataformizada. Todas as conversas, todos os negócios, tudo é determinado por algoritmos.
O lobby dessas empresas no Congresso e nos governos é muito forte no mundo inteiro. Pressão é a forma de ameaçá-los a não serem eleitos novamente.
Como avalia a experiência de regulação da União Europeia?
Conseguiram regulamentar, mas não estão conseguindo implementar. Está muito difícil porque há muita negociação política, muitas ameaças de Trump, com troca de cargos de pessoas que eram mais pulso firme. A eleição de Trump trouxe uma pressão enorme para esvaziar a regulação europeia e dificultar ao máximo a implementação, especialmente o pagamento das multas, o questionamento.
Casos como a morte de uma menina desafiada em uma rede podem aumentar a pressão da sociedade?
Acredito muito na pressão popular. É a única forma que temos, por exemplo, de obrigar o Congresso a regulamentar e obrigar o governo a implementar as medidas. O lobby dessas empresas no Congresso e nos governos em geral é muito forte, no mundo inteiro. Pressão é a forma de ameaçá-los a não serem eleitos novamente. As pessoas já entenderam que é um problema, mas é fundamental explicar que esse problema não é individual, é um problema coletivo que precisa de regulação. Vejo muitas matérias da imprensa que tentam dizer como se proteger, sugerindo que, se o filho está sofrendo, é porque os pais não monitoram o que ele faz na internet. Isso é impossível de ser parado no nível individual. É preciso tratar esse problema coletivamente.